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    Clóvis Rossi

    Turquia culmina liquidação da mídia independente

    16/06/2017 13h19

    Murat Cetinmuhurdar - 23.abr.2017/Palácio Presidencial/Reuters
    urkish President Tayyip Erdogan poses with children during a ceremony to mark the National Sovereignty and Children's Day at the Presidential Palace in Ankara, Turkey, April 23, 2017. Murat Cetinmuhurdar/Presidential Palace/Handout via REUTERS ATTENTION EDITORS - THIS PICTURE WAS PROVIDED BY A THIRD PARTY. FOR EDITORIAL USE ONLY. NO RESALES. NO ARCHIVE. ORG XMIT: TUR02
    Recep Erdogan, presidente da Turquia, posa durante cerimônia em Ancara

    O governo de Recep Tayyp Erdogan prepara a liquidação do pouco que resta de imprensa independente na Turquia, ao julgar, na segunda-feira (19), um grupo de 15 destacados jornalistas, além de um ex-chefe de polícia e um produtor de filmes.

    São acusados de participar da preparação, promoção ou comunicação de mensagens para a cruenta tentativa de golpe de 15 de julho de 2016.

    Que tentativas de golpe devam ser punidas ninguém discute. Mas quando um dos elementos da acusação é a "entrega de mensagens subliminares", aí entra-se facilmente no território do arbítrio, aliás amplamente preenchido na repressão que se seguiu ao golpe fracassado.

    Entre os jornalistas a serem julgados estão Mehmet Altan, 64, professor de economia e comentarista político que escreveu mais de 25 livros; Ahmet Altan, 67, ex-editor-chefe do jornal "Taraf"; Nazli Ilicak, 71, ex-colunista do jornal "Bugun" e autora de vários livros sobre a democracia turca; o ex-redator-chefe do jornal "Zaman", Ekrem Dumanli; o ex-redator-chefe do "Today's Zaman", Bulent Kenes; o ex-redator-chefe da "Turkish Review", Abdulkerim Balci; o ex-editor-chefe da revista "Chronicles", Tuncay Opcin.

    A inclusão na lista de jornalistas que trabalharam no "Zaman" e no "Today's Zaman" serve para contar o pano de fundo do julgamento e, mais amplamente, o da repressão pós-golpe.

    O Zaman e sua versão em inglês eram ligadas a Fetullah Gülen, o pregador islamista exilado nos Estados Unidos. À época, apoiavam fortemente Erdogan, enquanto ele era primeiro-ministro e parecia tentar uma proeza inédita no mundo muçulmano: conciliar Islã e democracia.

    Quando Erdogan começou a exibir o que o movimento de Gülen achava tendências autoritárias, rompeu com ele, o que se refletiu nas páginas dos jornais do grupo, que passaram a ser fortemente críticos ao premiê e, agora, presidente.

    Consequência: as duas publicações acabaram expropriadas e são hoje vozes domesticadas a favor do poder.

    É uma clara evidência de que o cerco ao jornalismo começou antes da tentativa de golpe. Domar o jornalismo independente passou a fazer parte da luta pelo poder entre o "gülenismo" e Erdogan.

    O golpe foi a culminação desse processo. O governo turco acusa o que chama de FETO (Organização de Terror Gulenista, na sigla em turco) pela tentativa de golpe.

    Desencadeou em consequência uma blitz que levou à prisão milhares de pessoas acusadas de pertencer ao movimento. Mas até agora só está comprovado que ligados ao "Hizmet" (Serviço), o nome oficial do movimento gulenista, participaram do complô, mas não há ainda evidências de que ele tenha sido organizado e/ou ordenado pela cúpula do grupo.

    A cronologia na madrugada do golpe, aliás, só lança dúvidas: a primeira informação oficial de que o gulenismo era o responsável surgiu na agência oficial Anadolu à 00h05 do sábado, meia hora antes de que um promotor abrisse a primeira investigação sobre o movimento golpista.

    Como é possível acusar alguém antes mesmo de se abrir uma investigação?

    E só à 01h39 foram presos os primeiros soldados, que poderiam confirmar quem era o organizador do golpe.

    Fica claro que Erdogan já tinha na mira o movimento de Gülen, tanto que milhares de prisões e demissões do serviço público foram feitas antes de qualquer investigação aprofundada.

    Parece evidente que o presidente turco preparava-se para se desembaraçar de seu antigo apoiador, agora inimigo mortal, e, por isso, já tinha a lista dos que eram a ele ligados em diversos setores públicos e privados.

    Diz, por exemplo, Burak Kadercan, professor-assistente de Estratégia e Política do Colégio Naval norte-americano: "Erdogan usará o mote 'seguidores de Fetullah Gulen' como narrativa para refazer à sua imagem os militares, o Judiciário, a educação superior, a burocracia, a mídia e até a mídia social".

    O julgamento de segunda-feira dos jornalistas não é o único momento para demonstrar que essa operação está em marcha: no âmbito político, Enis Berberoglu, um dos vice-presidente do Partido Republicano do Povo, o principal da oposição, foi condenado na quinta-feira (15) a 25 anos de prisão, por supostamente revelar segredos de Estado (transferência de armas turcas para radicais que lutam na Síria).

    Berberoglu também é jornalista, ex-editor-chefe do "Hurriyet", o maior do país e uma rara voz de oposição no jornalismo, embora cautelosa como demanda a situação.

    A prisão do jornalista provocou mobilizações maciças de protesto.

    Não é o único político preso. Há uma dúzia de outros parlamentares, principalmente do Partido Democrático do Povo, representante dos curdos, inclusive o copresidente, Selahattin Demirtas.

    Tudo somado, fica demonstrado que não é apenas a mídia que está sendo sufocada na Turquia, mas a democracia. Com isso, esfarela-se a esperança de que Erdogan pudesse conciliar Islã e democracia.

    clóvis rossi

    É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.

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