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    Clóvis Rossi

    As balas perdidas no Rio, que Miami conseguiu controlar

    24/07/2017 16h10

    Abro a edição eletrônica do "Miami Herald", dias atrás, e me parece estranhamente familiar a foto de King Carter, negro, seis anos, embora eu nunca o tenha visto na vida.

    A legenda da foto explica a familiaridade: King foi morto por uma bala perdida quando ia comprar doces em uma loja próxima de sua casa, em Miami. É inevitável lembrar de episódios semelhantes, em geral também com crianças negras, no Rio de Janeiro.

    Mas a história que o jornal americano conta contém algo que nenhum jornal brasileiro pode repetir: mostra que as mortes violentas na cidade estão em queda há três anos.

    Informa que, dos 26 homicídios registrados nos primeiros seis meses do ano em Miami, só 16 foram causados por arma de fogo. Mais: os dois números representam uma redução histórica em uma cidade machucada por cerca de 300 homicídios/ano durante a década de 1980.

    Nessa época, lembra o jornal, a cidade era chamada de "paraíso perdido", um rótulo que pode perfeitamente ser aplicado ao Rio de Janeiro de hoje. Afinal, tanto o Rio como Miami oferecem panoramas deslumbrantes, mais o Rio que Miami, pelo menos para o meu gosto.

    Pena que o rótulo continue valendo para o Rio, enquanto Miami se afasta dele.

    Vale a pena por isso examinar as causas pelas quais os homicídios estão diminuindo em Miami para ver até onde as receitas podem ser aplicadas ao Rio —e a outras cidades brasileiras em que os índices de violência são igualmente hediondos.

    Ponto por ponto:

    1 - Compartilhamento de informações de inteligência entre as repartições policiais.

    É um ponto óbvio, mas que no Brasil parece de difícil implementação, ante as conhecidas divergências entre, por exemplo, as polícias Civil e Militar.

    2 - Maior envolvimento dos pais, que reclamaram, com persistência, que se pusesse um fim à violência armada.

    Aqui, há razoável coincidência com o Rio e outras cidades, em que há manifestações da sociedade sempre que ocorre um crime semelhante ao que matou King Carter em Miami.

    O problema é que as autoridades deixam cair no vazio os protestos. Em Miami, ao contrário, "tivemos que construir pontes para abrir linhas de confiança e comunicação (com a comunidade)", disse ao Miami Herald Calvin James, da Delegacia de Homicídios de Miami Dade.

    No Rio, as UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) foram um interessante passo nessa direção, mas parece que a linha de confiança acabou rompida nos últimos tempos.

    3 - Maior controle sobre armas, o que parece mais fácil de se fazer no Brasil, se se considerar a doentia paixão que o americano tem pelas armas, muito mais intensa do que no Brasil.

    Nesse ponto, é que se chega ao desânimo total: lembro-me muito bem de uma conversa com o então presidente eleito Fernando Henrique Cardoso, às vésperas de sua posse, ocorrida em janeiro de 1995.

    Havia à época alguma crise de segurança no Rio e ele disse ao pequeno grupo de jornalistas que acompanhava sua viagem ao Leste Europeu que o problema não era do Rio, que não fabricava armas. Era das fronteiras, pelas quais fluíam as armas que acabariam em mãos de criminosos.

    É chocante verificar que, na semana passada, o governador do Rio, Luiz Fernando Pezão, disse exatamente a mesma coisa a propósito de mais uma crise no sistema de segurança.

    Significa que os oito anos de FHC, os oito de Luiz Inácio Lula da Silva e os 6,5 de Dilma Rousseff/Michel Temer não foram capazes de pelo menos iniciar o enfrentamento do problema da porosidade das fronteiras.

    Tudo somado, temo que não viverei para ler, em algum jornal brasileiro, um balanço positivo como o feito pelo "Miami Herald".

    clóvis rossi

    É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.

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