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    Clóvis Rossi

    Inexistem no Brasil predadores sexuais como Harvey Weinstein?

    13/10/2017 10h43

    Yann Coatsaliou - 23.mai.2017/AFP
    (FILES) This file photo taken on May 23, 2017 shows US film producer Harvey Weinstein posing during a photocall as he arrives to attend the De Grisogono Party on the sidelines of the 70th Cannes Film Festival, at the Cap-Eden-Roc hotel in Antibes, near Cannes, southeastern France. The British Academy of Film and Television Arts (Bafta) said on October 11, 2017 it has suspended Harvey Weinstein's membership, effective immediately. The organisation acted as the scandal engulfing the Hollywood producer continued to widen, with new claims he raped an Italian film star and two other women drawing condemnation from across the film world and America's liberal political elite. / AFP PHOTO / Yann COATSALIOU
    Harvey Weinstein, ex-executivo da Miramax em evento no 70º Festival de Cannes

    Temo que, dentro de algum tempo, alguma atriz brasileira venha a público para dizer algo parecido ao que disse a francesa Lea Seydoux a propósito do predador sexual Harvey Weinstein, ex-todo-poderoso na indústria cinematográfica americana.

    Em artigo para o "Guardian", Seydoux afirmou que "todos" em Hollywood sabiam ao que Harvey se dedicava.

    Completou: "É inacreditável que ele tenha sido capaz de agir dessa forma por décadas e, ainda assim, manter sua carreira".

    Se há alguém que não tenha lido sobre o caso, resumo: uma investigação do "New York Times" revelou que Weinstein pagara a pelo menos oito mulheres para que não o processassem, depois de terem sido vitimas de assédio sexual e contacto físico não desejado.

    Outra publicação, a "The New Yorker", foi mais longe e relatou o caso de três mulheres que acusam o famoso produtor de violação.

    Na esteira dessas reportagens, uma porção de atrizes contou terem sido também acossadas pelo predador. Ele acabou afastado do comando de sua própria companhia e, depois, demitido.

    No Financial Times, Sebastian Payne escreve que "a cultura predominante em Hollywood é uma em que homens agressivos podem impor seu desejo aos outros por meio da pura força da personalidade" (personalidade não é bem o termo que eu usaria, mas continuemos).

    John Gapper, do mesmo jornal, argumenta que essa cultura de dominação masculina é como se faz no negócio do cinema. "Muito como na política, é uma indústria que funciona na base do poder, na qual o patrocínio é a rota mais segura da obscuridade para o estrelismo", escreveu.

    A pergunta que me faço desde que explodiu o escândalo Weinstein é simples: a "cultura" predominante na indústria brasileira do entretenimento é diferente?

    Como essa é uma das poucas áreas em que não atuei como repórter, não me atrevo a responder, mas o caso José Mayer é um indício importante de que deve haver Weinsteins soltos por aí, falando português.

    O ator, de 68 anos, foi acusado de assédio por Su Tonani, uma figurinista da TV Globo, o que levou a emissora a afastá-lo.

    Mayer desculpou-se em carta na qual diz ser "fruto de uma geração que aprendeu, erradamente, que atitudes machistas, invasivas e abusivas podem ser disfarçadas de brincadeiras ou piadas".

    Desculpa torpe, assim como é cínica a defesa de Weinstein: o sexo que fez com candidatas a atriz ou atrizes iniciantes teria sido consensual. Falso: quem assedia alguém a partir de uma posição de poder comete uma violação.

    Mayer, ator famoso na Globo, tinha naturalmente uma posição de poder em relação a uma figurista.

    Quantos outros de sua geração (ou de outras) não se acham titulares de uma versão atualizada do medieval "direito de pernada" sobre companheiras de trabalho? É crível que só ele tenha tentado exercê-lo ou se repete no Brasil o silêncio de que se queixou Seydoux?

    Bret Stephens, colunista do "New York Times", conta que a predação de Weinstein não era segredo, tanto que, na cerimônia do Oscar de 2013, Seth MacFarlane brincou com o fato - e todos os presentes riram, porque, obviamente, todos sabiam do que tratava a piada (piada infame, aliás).

    Stephens culpa até as mulheres que foram molestadas por Weinstein pelo silêncio, o que é desconhecer a mecânica dessas situações.

    Minha colega da Folha Francesca Angiolillo comentou comigo em bate-papo sobre o assunto no Facebook: "A mulher, quando sofre um abuso, sofre dois quase certamente: o abuso em si e o abuso do descrédito (além da vergonha, da culpa que automaticamente já se lhe imputa –'mas você viu como ela se veste?'–, por medo, porque somos muitas vezes levadas a duvidar de nossa interpretação do que nos acontece)".

    Completou: "É por esses motivos que o abuso se perpetua".

    É uma pauta, portanto, para o jornalismo investigativo brasileiro: descobrir se há Weinsteins no Brasil e, se sim, quantos são. Romper o silêncio é o primeiro passo para evitar que o abuso se perpetue.

    clóvis rossi

    É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.

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