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    Clóvis Rossi

    A democracia, insubstituível, está sofrendo forte taquicardia

    17/10/2017 11h34

    Arquivo PUC
    Estudantes em ato contra a ditadura na PUC, em 22 de setembro de 1977
    Estudantes em ato contra a ditadura na PUC, em 22 de setembro de 1977

    Ingênuo como sempre, acreditei piamente no mantra repetido pela campanha de Raúl Alfonsín à Presidência da Argentina, em 1983.

    A votação representaria, como de fato representou, a saída da ditadura genocida do período 1976/83. Bastava essa característica para dar valor histórico ao pleito.

    Mas Alfonsín foi além: dizia na TV que, com a democracia, os argentinos comeriam melhor, teriam um sistema de saúde melhor, uma educação melhor, uma vida melhor, enfim.

    Militante pela democracia –a única militância que tive na vida, além da luta pelos direitos humanos, intrínsecos a ela–, acreditei piamente.

    Trinta e alguns anos depois, continuo achando que a Argentina vive melhor na democracia, assim como os brasileiros vivemos melhor desde o fim da ditadura por aqui.

    Pena que quase dois terços dos brasileiros apoiam "ao menos uma forma de governo não democrática", conforme a pesquisa do Pew Center divulgada na segunda-feira (17) e relatada pela sempre atenta Isabel Fleck nesta Folha no dia seguinte.

    Mesmo entre os que consideram boa a democracia representativa, 39% aceitam uma forma de governo não-democrática". Somados aos 23% que desaprovam a democracia representativa, dá os dois terços acima citados.
    É assustador? É, pela simples e boa razão de que não se inventou ainda uma forma de governo menos ruim do que a democracia.

    Mas mais assustador é o fato de que os representantes - os líderes nas democracias representativas, com perdão por dizer o óbvio - não se dão conta de que alguma coisa não está funcionando no sistema.

    Ou, posto de outra forma, o problema não é a democracia em si, mas a maneira como o mundo político está funcionando nos últimos muitos anos. Dispensável dizer, por óbvio, que a deterioração da economia mina igualmente o apoio à democracia.

    Aliás, o "Latinobarómetro", valiosa medição anual dos humores na América Latina, constata regularmente três coisas na parte referente ao Brasil:

    1 - Preferência majoritária pela democracia em contraponto a um regime autoritário (49% contra 19% em 2013, último ano de que disponho de dados).

    2 - Crescente insatisfação com o funcionamento da democracia, em que pese o apoio majoritário a ela. Se 49% a preferem a qualquer outro modelo, só 20% pouco mais ou pouco menos estavam satisfeitos com o funcionamento dela, sempre em 2013.

    3 - Há uma correlação quase perfeita entre crescimento da renda per capita e satisfação com a democracia (neste caso, vale para o conjunto dos países pesquisados, não apenas para o Brasil). Sempre que cai a renda, cai o apoio à democracia. E vice-versa.

    É natural, portanto, que, nos três anos mais recentes, de profunda crise econômica, a democracia seja vítima de crescente descrédito: como notou Isabel Fleck, pesquisa anterior do mesmo Pew, em 2013, dera 66% de satisfação com a democracia, contra apenas 28% agora.

    As cenas explícitas de corrupção em exibição em todos os lares brasileiros há tanto tempo só podem ajudar a demolir a crença na democracia. Afinal, vale para o Brasil a frase da jornalista Daphne Caruana Galizia, assassinada em Malta na segunda-feira (16), ao que tudo indica por fazer parte da brigada que investigava o esquema de corrupção batizado de Panama Papers: "Há canalhas para todos os lados para onde você olha agora. A situação é desesperadora", dissera Daphne ao prestar queixa na polícia sobre as ameaças que recebia.

    Alguma surpresa com a desesperança com a democracia? Minha única dúvida é saber se ainda há tempo para a sociedade se mobilizar para corrigir os defeitos na máquina democrática (dos políticos, não espero nada).

    clóvis rossi

    É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.

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