Não há cidade no mundo que tenha tamanha carga de história e misticismo como Jerusalém. Mexer com Jerusalém é mexer com os fiéis das três grandes religiões monoteístas (cristãos, muçulmanos e judeus).
E foi justamente com Jerusalém —cujos deuses dormitavam— que esse inacreditável Donald Trump resolveu mexer nesta quarta-feira (6), como se não houvesse no mundo assuntos muito mais urgentes a enfrentar.
É um piromaníaco, a incendiar uma região que já tem a sensibilidade à flor da pele.
Pior, tascou fogo para nada, a rigor. Claro que o reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel tem tremenda carga simbólica —daí as unânimes previsões de que o líder americano estava "jogando a região e o mundo em um fogo que não tem fim à vista", para citar apenas um líder (o presidente turco Recep Tayyip Erdogan), entre os muitos aliados de Washington que condenaram a decisão.
Mas o simbolismo se esgota em si mesmo porque efeitos práticos propriamente ditos não haverá, ao menos não imediatamente. É provável que haja, sim, uma sequência de manifestações, talvez violentas em todo o mundo muçulmano, mas tendem a não durar muito.
Primeiro, porque o anúncio não muda nada para os judeus do mundo todo: uma significativa maioria deles sempre achou que Jerusalém é a capital una e indivisível de Israel, digam o que disserem Trump e os demais governantes do planeta.
Segundo, porque a comunidade internacional continuará a não reconhecer Jerusalém como capital indivisível de Israel. Deve haver alguma razão —que Trump não leva em conta— para que 86 embaixadas estejam instaladas em Tel Aviv e nenhuma em Jerusalém.
A razão do ponto de vista jurídico é clara: em 1980, o Conselho de Segurança das Nações Unidas, o coração do sistema internacional, aprovou resolução que condena a anexação por Israel de Jerusalém Oriental (predominantemente palestina), na esteira da guerra de 1967, considerando-a uma violação da lei internacional.
Além disso, há uma aceitação praticamente universal de que o status de Jerusalém deve ser definido no marco de uma negociação de paz entre Israel e os palestinos.
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Até os EUA participavam desse consenso, tanto que presidentes democratas e republicanos (Bill Clinton, Barack Obama, George W. Bush e mesmo Trump, até quarta-feira) sempre adiavam a decisão (aprovada pelo Congresso em 1995) de transferir a embaixada para Jerusalém.
Como a mudança da embaixada foi de novo adiada por decisão de Trump, no terreno não muda nada. Talvez apenas a previsão generalizada de que o presidente dinamitou de vez um processo de paz que, de qualquer forma, já estava comatoso.
O melhor balanço da história está no resumo da mídia em hebraico, feito para o "Times of Israel" por Joshua Davidovich: "Quase todo mundo em Israel concorda que Jerusalém é a capital de direito, mas muitos veem que os diferentes custos do reconhecimento superam qualquer benefício".
Muitos, menos Trump, piromaníaco que se acha o centro do mundo e não liga minimamente para o resto do planeta e para o bom senso.
É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.