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    Clóvis Rossi

    Conversar também é preciso

    24/12/2017 02h00

    Há pouco mais de uma semana, "El Roto", o notável chargista de "El País", publicou um desenho que, segundo ele, retratava "a última fase do enfrentamento social": um homem dizendo a si mesmo "não me falo".

    Pois é, as sociedades modernas chegaram de fato a esse ponto de incomunicação. Já era suficiente que adversários políticos, em vez de se falarem, desqualificassem uns aos outros; que torcidas adversárias, em vez de incentivar o seu time, atacassem e até matassem os adversários; que portadores de uma determinada opinião sobre o que é arte tentassem —e às vezes conseguissem—
    fechar uma exposição.

    Nesse contexto, não conversar nem consigo mesmo era um inevitável ponto de chegada. Não vou me meter, como é óbvio, nos comportamentos individuais, que pertencem ao território da privacidade, que convém sempre respeitar.

    Mas quando o "não falar" da charge refere-se à política e/ou ao coletivo, é preciso cutucar as pessoas e, especialmente, as instituições, sim, senhor. Ainda mais que é Natal e qualquer discussão sobre as muitas desgraças que infestam o país e o planeta ficaria deslocada.

    Além disso, é praticamente 2018, ano de eleições gerais, sempre uma oportunidade para pôr na vitrina as mazelas do país e, de preferência, também a maneira de tentar começar a encará-las.

    Não adianta amar ou odiar as reformas que estão sendo promovidas pelo governo de Michel Temer sem dialogar com elas. Tome-se a reforma da Previdência, por exemplo. Parece haver um consenso o mais amplo possível de que uma reforma é necessária, indispensável até. Não há, entretanto, um consenso nem sequer parecido sobre a forma proposta pelo governo para mexer nas aposentadorias.

    Como a oposição não fala com o governo, e o governo só negocia com os seus em bases fisiológicas, fica a impressão de que a oposição defende o status quo, que é indefensável, e que os governistas defendem exclusivamente os seus interesses.

    Danem-se, pois, os futuros aposentados ou danem-se as contas públicas ou ambos.

    Não seria mais sério se, na campanha de 2018, cada lado expusesse ao eleitorado o que fazer com a Previdência, um problema que precisa ser enfrentado, goste-se ou não? Veja-se o exemplo da Argentina: o governo de Mauricio Macri conseguiu fazer aprovar a sua reforma, mesmo sendo minoritário no Congresso, apenas porque dialogou e convenceu uma parte da oposição (o peronismo não kirchnerista).

    Tampouco adianta amar ou odiar Luiz Inácio Lula da Silva e/ou Jair Bolsonaro. O que o Brasil precisa não é de fã-clubes, mas de projetos de país. Todos os candidatos deveriam dialogar com o eleitorado a partir de propostas para enfrentar a obscena realidade brasileira, retratada pelo fato de 64,9% da população vive em "pobreza multidimensional", segundo o IBGE.

    Entendo que tempos sombrios como os que vivemos são pouco propícios ao diálogo. Mas já dizia Bertold Brecht em tempos ainda mais sombrios (ascensão do nazismo): "E nos tempos sombrios haverá canto? Sim. Haverá canto sobre os tempos sombrios".

    clóvis rossi

    É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.

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