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    Contardo Calligaris

    Para José Wilker

    10/04/2014 03h02

    1) Era uma manhã perfeita no Rio: azul, sem uma nuvem e nada abafada —a temperatura certa. Minha mulher estava nas pedras do Arpoador quando recebeu o telefonema. E ela me ligou enquanto eu, em São Conrado, olhava para a praia e para a pedra da Gávea.

    Pensei (pensamos, na verdade): não pode ser, não num dia assim. Ninguém deveria morrer num dia assim.

    A beleza é tremendamente traiçoeira. Deve ser por isso que a gente diz que as coisas podem ser "lindas de morrer".

    2) José Wilker morreu no sono, sem perceber. Foi assim que morreu minha mãe, anos atrás. E foi assim que morreu, neste mesmo fim de semana de bruxas soltas, a avó de meu filho, minha ex-sogra: sentada numa poltrona.

    Dizem que essa morte repentina e imprevista é a morte ideal, graças à qual evitamos sofrer pela hora que se aproxima —seja ela a nossa ou a de um ser querido.

    Entendo, concordo. Mas, na morte clássica, havia um momento que nos faz falta: com os mais próximos ao redor da cama, o moribundo tinha o tempo de se despedir de todos, um por um.

    3) O velório durou da noite de sábado até a tarde de domingo, no Teatro Ipanema, que foi o primeiro grande palco de José Wilker no Rio, em 1970. Para alguns artistas que estavam no velório, as peças de Wilker no Ipanema, "O Arquiteto e o Imperador da Assíria" e "A China É Azul", eram as primeiras apresentações que eles viram na vida.

    4) O caixão estava no meio do palco; parentes e amigos ficavam nas primeiras fileiras da plateia, e o público subia ao palco, contornava o caixão e descia do outro lado.

    No fundo da cena, atrás do caixão, estavam algumas fotografias de José Wilker em diferentes atuações. A maior, no centro, era um retrato dele retirando a maquiagem após uma apresentação de "Mefisto", no começo dos anos 90.

    Era uma forte metáfora do sacrifício do ator: atrás da maquiagem de cena, o comediante, à força de atuar, à força de ser mil outros, tinha perdido sua vida. E o público, subindo ao palco, fazia essa descoberta, agradecia e rendia homenagem.

    5) Porque ninguém podia morrer naquele dia no Rio, porque estávamos num teatro, porque havia sobretudo atores na plateia, eu tinha a sensação, repetida, de que aquilo tudo fosse uma encenação.

    Pensava numa comédia de Eduardo de Filippo (talvez "Napoli Milionaria"), em que, de uma hora para outra, saberíamos que o morto era de brincadeira, José Wilker se levantaria, ele faria sua reverência e o público aplaudiria. Ou então talvez se tratasse de um remake de "Dona Flor e Seus Dois Maridos"; alguém gritaria "cooorta!", e Vadinho sairia do caixão para dar uma descansada —porque fazer o morto cansa (pergunte para qualquer ator que fez).

    Vadinho é José Wilker, na memória de todos. Vadinho também morreu de repente, sem pré-aviso e num dia que não era para isso, um Carnaval. E Vadinho é um morto duvidoso, um morto que volta. Por isso talvez a sensação de que não era de verdade, que alguém gritaria: "Cooorta".

    6) Na madrugada de sábado, na rua na frente do teatro, senti um certo incômodo com os fotógrafos, as câmeras de TV e os celulares dos "fãs".

    Mas eis que uma mulher se aproximou de mim e me perguntou: "O senhor sabe se a família dele chegou?". Meio a contragosto, respondi que as filhas dele estavam lá. Mas ela queria saber da família do Ceará, "a família de longe". Com uma sabedoria de retirante, que conheço bem por viver longe de meu lugar de origem, ela queria saber se dera tempo para todos chegarem ao enterro do parente. Expliquei que sim, as irmãs e a sobrinha dele tinham chegado do Recife. Ela disse, com um alívio genuíno: "Que bom". Não era curiosidade, era mesmo cuidado e carinho.

    7) Era difícil, se não impossível a família e os amigos reconhecerem todo o mundo. Um senhor corpulento se adentrou nas fileiras dos amigos e da família; comovido, ele abraçava a todos e era retribuído.

    Nota dissonante, ele sussurrou no ouvido de uma amiga que aquilo não podíamos deixar passar, que o complô tinha que ser revelado A amiga me avisou: havia alguém um pouco (ou muito) estranho que circulava no velório distribuindo beijos e teorias conspiratórias.

    Pensei que ninguém, naquele velório, apreciaria a história do homem corpulento tanto quanto o próprio José Wilker —alguém tinha achado um jeito involuntário de fazer uma última homenagem ao seu humor, legendário.

    contardo calligaris

    Italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Escreve às quintas.

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