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    Contardo Calligaris

    Insultos, ideias e adesões

    23/10/2014 02h00

    Em época de eleições, talvez eu devesse me dedicar à literatura e ao cinema. De fato, estou querendo escrever sobre a obra de Patrick Modiano desde o dia em que ele ganhou o prêmio Nobel. Mas não tem jeito: as eleições são um tema fascinante.

    Comecemos pelo paradoxo seguinte: quanto mais as eleições se aproximam, tanto menos se consegue debater sobre opções de governo. Como pode?

    Acontece que, nesta eleição, contrariamente ao que todos parecem gritar, não se enfrentam visões realmente antagonistas. Grosso modo, como observou Vinicius Mota na Folha de segunda feira, ninguém se afasta da "decisão fundamental de nos tornarmos um Estado de Bem-Estar Social".

    Claro, há diferenças quanto aos caminhos pelos quais cada candidato quer levar o país até lá, mas o futuro sonhado é o mesmo: uma social-democracia, menos corrupta, menos disfuncional e mais justa (detalhe engraçado: quatro décadas atrás, na esquerda, ser chamado de "social-democrata" era um insulto –não sinto nostalgia disso).

    Paradoxalmente, o fato de que os candidatos têm visões de futuro compatíveis produz e explica o caráter raivoso da campanha.

    Poucos aguentam discussões técnicas sobre as vantagens da autonomia do Banco Central, o superavit primário, a meta de inflação etc. No dia do debate, os que ligam a TV preferem um show de fortes emoções.

    Como produzir esse show se os dois candidatos são menos opostos do que parece? Simples e sem esforço algum.

    Sabemos (desde Freud) que as pequenas diferenças são as que inspiram as reações mais violentas. É o próximo mais parecido conosco que odiamos com facilidade: ninguém quer exterminar as girafas, mas podemos querer exterminar o vizinho um pouco mais escuro ou mais claro que a gente. Ou seja, os concorrentes seriam menos adversos se não compartilhassem uma mesma visão de futuro.

    Mas não é só para ficar acordados no debate que os eleitores preferem oposições radicais. A existência (suposta) de campos "opostos" permite "aderir" plenamente a um deles, e aderir –ser e sentir-se parte integrante de um grupo– é uma paixão humana quase universal, embora um tanto sinistra.

    A vontade de aderir a qualquer partido, igreja, torcida ou tribo é quase uma falha moral, que corresponde ao anseio de se perder numa coletividade para poder descansar da tarefa (mais árdua) de inventar pensamentos e critérios próprios.

    Resumindo: o próprio fato de que os dois blocos políticos não tenham alvos radicalmente diferentes alimenta uma oposição surda aos argumentos do outro, na qual a adesão encoraja cada um a renunciar à sua capacidade de pensar por conta própria.

    Outra observação. Os religiosos, mais ou menos fundamentalistas, sabem amedrontar os políticos. Eles querem que seus preceitos morais tenham valor de lei para todos, e sua intolerância garante que a chantagem funcione: se você for a favor da liberalização da maconha, da descriminalização do aborto, do casamento gay etc., não conte conosco.

    Os liberais (ou libertários, que seja) não querem que seus preceitos morais tenham valor de lei para todos. Ser a favor do casamento gay não significa exigir que os pastores evangélicos tenham experiências homossexuais mais ou menos tórridas etc.

    Consequência dessa diferença: os políticos que têm apoio entre liberais e libertários (tanto Dilma quanto Aécio) pensam que não precisam cuidar dessa base.

    Assim, liberais e libertários nos acostumamos a ver políticos que, em tese, nos representam, cabisbaixos, em cada tipo de função religiosa.

    Mensagem subentendida: claro que estamos com você, não se preocupe, só aparecemos aqui porque precisamos do voto dos religiosos.

    Agora, tudo tem limites. Aécio festejou o apoio de Feliciano. Ok. Mas ele acrescentou: "Tenho orgulho de estar fazendo a campanha ao lado de vocês a partir de agora. Fiz questão de vir aqui hoje pessoalmente para agradecer o apoio pelas razões da consciência e pelas razões do coração". Mamma mia.

    Novidade: nas eleições legislativas em curso nos EUA, os liberais e libertários estão encontrando um jeito de serem ouvidos.

    Imagine o anúncio: "Sicrano (candidato à Câmara) quer que o aborto seja ilegal também em caso de estupro e de incesto. Você quer isso?". Espero que, nas próximas eleições, alguém se disponha a angariar fundos para uma campanha desse tipo.

    contardo calligaris

    Italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Escreve às quintas.

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