• Colunistas

    Friday, 03-May-2024 20:39:45 -03
    Contardo Calligaris

    Modiano e a arte da memória

    30/10/2014 02h00

    Há prêmios Nobel de literatura que me surpreendem. Por exemplo, não conhecia Herta Müller até ela ganhar, em 2009. Há outros pelos quais torço e que nunca chegam —é o caso de Philip Roth. Enfim, há os que me provam que tenho gostos em comum com os acadêmicos suecos, como aconteceu no ano passado com a escolha de Alice Munro.

    Patrick Modiano, que recebeu o prêmio Nobel deste ano, está numa categoria à parte. Eu me senti invadido, como se a Academia revelasse um dos meus segredos íntimos: Modiano é um daqueles escritores que nos deixam a impressão de que eles escrevem só para a gente —e, reciprocamente, só a gente sabe que eles são grandes.

    Comecei a ler Modiano quando ele publicou seu primeiro romance, "La place de l'Étoile", em 1968. Para entender o título, é preciso lembrar que 1) em francês, "place" significa tanto "praça" quanto "lugar", 2) a place de l'Étoile é um cartão postal parisiense: a rotatória que se situa no fim dos Champs-Élysées e no meio da qual surge o Arco do Triunfo napoleônico, 3) "étoile", em francês, significa "estrela".

    Pois bem, o romance de Modiano começa com uma piada de judeus, que não é bem uma piada e não é bem de judeus.

    Em junho de 1942, na Paris ocupada pelas tropas do reich, um oficial alemão se dirige a um jovem e lhe diz: "Desculpe, onde está a place de l'Étoile?". E o jovem, em vez de ajudar o alemão no seu périplo turístico, aponta para o lado esquerdo de seu peito, ou seja, para o lugar onde os judeus eram obrigados a vestir a estrela amarela que os identificava.

    Sessenta e oito era o ano em que eu começava a descobrir e inventar minha Paris. L'Étoile não foi um lugar crucial na topografia de minha vida e de minha memória, salvo por ser o lugar de onde se abrem as portas do Bois de Boulogne, Disneylândia do sexo, sobretudo durante os anos de Georges Pompidou. Também, no começo de minha análise, meu psicanalista morava perto da Place des Ternes, e era frequente que eu descesse do metrô na estação Étoile e caminhasse pela avenue de Wagram. Enfim, para chegar à clínica de Neuilly onde nasceu meu filho, era necessário passar por l'Étoile.

    A geografia de nossas vidas (ampla como o mapa-múndi ou restrita a um quarteirão, tanto faz) é um espaço mental. Reciprocamente, toda nossa vida mental (memórias, pensamentos, ideias, sonhos"¦) se projeta no mapa dos lugares por onde a vida nos leva.

    No século 16, Giulio Camillo, um humanista italiano, imaginou um pequeno teatro cujos degraus, setores, lugares etc. poderiam ser associados aos elementos do saber da época, servindo como uma ajuda para a memória. Pois bem, Modiano sabe que o mundo dito "externo" é sempre um teatro da mente e da memória, e não há memória ou pensamento que não se encarne numa topografia.

    Dos romances de Modiano, a Rocco republicará, até o fim do ano, "Dora Bruder", "Ronda da Noite" e "Uma Rua de Roma" (título original: "Rue des Boutiques Obscures" —importante no meu teatro da memória, porque era a rua da sede do Partido Comunista Italiano).

    Disponível em português, neste momento, há um pequeno livro infantojuvenil, que recomendo aos adultos, "Filomena Firmeza" (Cosac Naify): as ilustrações de Sempé são primorosas, e a história é uma perfeita introdução ao mundo de Modiano.

    Na fronteira entre o terceiro arrondissement e a praça da République, circula o pai de Filomena. Uma bruma discreta (talvez devida à miopia de Filomena) esconde o que ele faz, mas uma coisa é certa: ele é adorável, mas não é um herói.

    O Nobel foi atribuído a Modiano "pela sua arte da memória" —e eu continuaria: por uma arte da memória sem idealização do passado, uma espécie de nostalgia dolorosa e carinhosa da fraqueza dos pais que não foram heróis.

    É por esse carinho, por essa capacidade de perdoar e amar que Modiano me fascina. Diferente do de Modiano, meu teatro da memória é o palco de uma geração de gigantes, onde meu pai e seus companheiros lutaram contra algum mal absoluto; mas suspeito que essa visão ideal esconda de mim algo mais importante e que eu deveria enxergar para poder entender quem foi meu pai e, por consequência, quem sou eu.

    Enfim, como introdução ao mundo de Modiano, (re)veja "La Traversée de Paris" ("A Travessia de Paris"), 1956, dirigido por Claude Autant-Lara e escrito por Marcel Aymé. Se você se comover e gostar tanto de Bourvil quanto de Jean Gabin, você vai amar Modiano.

    contardo calligaris

    Italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Escreve às quintas.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024