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    Contardo Calligaris

    Feliz Ano Velho

    01/01/2015 02h00

    É um clichê, mas continua valendo: os anos passam e pouco muda, salvo o fato de que envelhecemos.

    Em geral, não acredito nas datas. E daí que é dia 1º de janeiro? É apenas outro dia, mais um, depois de ontem –que por acaso era 31 de dezembro. É por isso que nunca me lembro dos aniversários, nem mesmo dos meus.

    Quanto ao ano que começa hoje, só sei que haverá uma mudança: durante um mês, ao preencher cheques, tenderei a errar a data.

    Como sugere o lindo título do livro de Marcelo Rubens Paiva, o ano novo já está velho antes de nascer.

    Apesar disso, faço votos e tenho propósitos para o ano novo, como todo o mundo. Ou seja, pareço acreditar (e apostar) numa renovação que estaria implícita ou especialmente desejável na mudança de data.

    Natal, para mim, é uma festa de família restrita, como Páscoa, e já passei o Natal sozinho –gostei. A noite do dia 31 de dezembro, ao contrário, prefiro passá-la em companhia, mesmo que seja a companhia de desconhecidos –numa festa de rua, num bar, numa bagunça qualquer ou (aconteceu comigo uma vez) num trem (à meia-noite, houve festa).

    Por que será que, na última hora do ano, prefiro estar em companhia?

    Minha hipótese é que, no balanço final do ano que termina, na hora de contar as dificuldades, os erros e as tragédias, a lista na qual penso é, talvez antes de tudo, a dos impasses da vida coletiva.

    Certo, vou me lembrar que naquele ano a natureza não foi clemente nem comigo nem com os humanos (tsunamis, incêndios, doenças, seca"¦). Também vou me lembrar de que, no meu pequeno universo íntimo, várias coisas deram errado (sei lá, divorciei, briguei). Mas é na vida coletiva que encontro a maior marca do fracasso.

    2014? O surgimento do Estado Islâmico, as decapitações, a intolerância, o ódio contra as mulheres, o racismo, os emigrantes africanos afogados a caminho da Sicília, o separatismo dos russos da Ucrânia, a corrupção endêmica aqui e alhures, os 43 estudantes mexicanos sequestrados e assassinados pelo narcotráfico, as 132 crianças paquistanesas assassinadas pelo Talibã"¦ É isso que me vem, nessa ordem ou em outra.

    Na reunião de fim de ano, que seja uma festa ou não, talvez eu queira reafirmar que, contra as aparências, é possível conviver. Na rua, num bar, na casa de um amigo, é como se quisesse celebrar a obstinação com a qual continuamos apostando que a vida em sociedade é possível –apostando que a barbárie não é um destino inevitável. Ou que, se tivermos mesmo que ir à barbárie, será nos agarrando em todos os postes que encontraremos no caminho, resistindo à maré.

    É isso, a festa de fim de ano, para mim, é um jeito de celebrar a possibilidade de conviver. Pode ser assistindo a uma peça ou a um filme, pode ser num pequeno clube de jazz, pode ser na confusão de Times Square ou da Paulista.

    Pode ser também numa igreja: tanto faz que Deus escute ou não, a reza vai valer por juntar os fiéis na vigília.

    A minha celebração de Ano-Novo, além de uma festinha com amigos no dia 31, será no dia 3, sábado, a partir das 14 horas. Se alguém estiver em Nova York, que apareça.

    Na Washington Square (lado sul), há uma igreja, a Judson Memorial Church. A Judson organiza uma leitura em voz alta, do começo ao fim, de "Mal-Estar na Civilização", o texto de Freud de 1929.

    Entre outros, lerão o texto Elizabeth Rubin (grande repórter de zonas de guerra, esteve no Afeganistão, Chechênia, Paquistão, Iraque, Israel, nos territórios palestinos e por dois anos em Sarajevo, etc.), Simon Critchley (filósofo da ética pós-moderna), Michael Cunningham (o autor de "As Horas") e o rabino Andy Bachman.

    A ideia é que o livro de Freud, sombrio e sem ilusões, tentando entender as dificuldades insurmontáveis da vida dos humanos em sociedade, talvez seja o texto que mais possa nos ajudar a resistir contra o pior.

    Não sei se Freud acreditava mesmo que fosse possível uma sociedade em que um superego menos intolerante nos deixasse viver com menos culpa, mais prazer e mais tolerância pelo prazer do vizinho.

    De qualquer forma, não se trata de concordar com Freud ou discordar dele. O que importa é celebrar, com ele, nossa capacidade, humilde e desesperada, de entender quem somos e talvez de mudar um pouco o rumo de uma história cujo balanço anual não é (nunca) dos melhores.

    contardo calligaris

    Italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Escreve às quintas.

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