• Colunistas

    Tuesday, 30-Apr-2024 18:33:32 -03
    Contardo Calligaris

    Um menino que desobedece

    DE SÃO PAULO

    08/01/2015 02h00

    Um casal de amigos, que não via há anos, fez questão que eu me encontrasse com o filho deles, que conheci quando ele era criança e agora é um adolescente um pouco caricatural.

    Ricky se opõe a quase tudo, direta ou indiretamente. Combinam que ele vai voltar às 23h? Ricky volta de madrugada. Perguntam se ele fez as lições de casa? Ricky mente que sim. Nada dramático, mas a lista das queixas é infinita: qualquer ocasião é boa para Ricky comprar uma briga com os pais.

    Será que a desobediência sistemática de Ricky é um transtorno? Os pais são tentados por essa ideia, mas fogem dela.

    Afinal, eles mesmos valorizam a desobediência do filho: o que mais querem é que Ricky seja autônomo um dia, e não há como ser autônomo sem ser rebelde, não é? Argumento final: se eles mesmos não soubessem desobedecer, se não gostassem de dizer "não", nunca teriam sido militantes, ativistas, aventureiros"¦

    Em suma, os pais se perguntam se Ricky precisa de uma terapia, mas a própria ideia de "curar" a desobediência de Ricky lhes parece coisa de regime totalitário, em que opositor seria considerado doente mental.

    Fico com duas perguntas: será que a liberdade precisa ser a liberdade de desobedecer? Ou será que, às vezes, a necessidade de desobedecer pode ser uma forma de servidão?

    Ricky parece tão preocupado em afirmar abstratamente sua desobediência que não sei se lhe sobra o tempo para fazer algo interessante com a liberdade que, supostamente, ele conquistou.

    Explico. É normal que alguém desobedeça quando quer tomar um caminho que lhe está sendo barrado. Mas é curioso que alguém deixe de fazer o que gosta só para poder desobedecer.

    Por exemplo, Ricky quer passar o dia na pista de skate, a mãe pede que ele use gorro (olhe bem: não capacete, que poderia parecer infantil –só gorro), Ricky prefere não usar gorro a passar o dia como ele quer.

    A desobediência é um transtorno quando desobedecer se torna mais importante do que o próprio comportamento em nome do qual alguém desobedece. Ou seja, quando o que importa não é ir para a pista de skate, o que importa é não usar o gorro e irritar a mãe.

    A neurose é isto: a obrigação irresistível de repetir experiências afetivas antigas e familiares. Isso, a qualquer custo —inclusive renunciando ao que a gente deseja.

    Se fôssemos menos parasitados por essas obrigações afetivas, seríamos provavelmente mais inteligentes e mais eficientes —seríamos, certamente, mais livres. Ricky, em suma, não desobedece porque é um espírito livre; ao contrário, ele perde a liberdade de passar o dia na pista de skate para servir a obrigação de contrariar a mãe.

    Penso no grupinho de meus amigos mais próximos nos anos 1960 —no fim do secundário e na faculdade.

    Tínhamos ideias políticas divergentes: havia um ou dois trotskistas, alguns comunistas do Partido Comunista ou do Manifesto, e havia militantes de "Lotta Continua". Havia até stalinistas declarados (hoje seria bizarro, mas na época não era). Um pouco mais tarde um casal anarquista se juntou à gente.

    Quase ninguém tinha ideias, esperanças e práticas políticas parecidas com as de seus pais. Mas não havia como pensar que a gente militasse e manifestasse com o propósito de indignar nossos pais. Isso, por duas razões.

    Primeiro, os pais (todos recém-saídos da Segunda Guerra e da luta antifascista) não se irritavam nem se indignavam facilmente. Para contrariar realmente nossos pais, seria preciso que a gente se declarasse fascista nostálgico. E disso ninguém tinha a menor vontade.

    Segundo (e fato curioso), éramos todos, sem exceção, excelentes alunos. Todos passamos com médias acima de oito no exame de maturidade clássica. Na universidade, todos colecionávamos "trinta cum laude" nos exames que prestamos antes que a instituição explodisse, em maio de 1968, e o trinta se tornasse uma nota "política", de praxe para qualquer aluno.

    Ou seja, éramos rebeldes (nós teríamos preferido dizer "revolucionários", obviamente) a ponto de encarar a polícia e a direita nas ruas; também éramos rebeldes nas nossas escolhas concretas de vida (sexo, drogas e rock and roll). Mas não éramos rebeldes abstratos. Não éramos insubordinados. Simplesmente, tínhamos mais o que fazer na vida do que brigar com nossos pais (ou com quem quer que seja) por causa de um ou outro gorro.

    contardo calligaris

    Italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Escreve às quintas.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024