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    Contardo Calligaris

    Verdades do passado

    DE SÃO PAULO

    26/02/2015 02h00

    Na minha primeira viagem à Argentina, em 1984, soube que, durante a ditadura, bebês de desaparecidos tinham sido adotados por simpatizantes dos assassinos e torturadores de seus pais. Alguns talvez tenham sido adotados pelos próprios assassinos e torturadores de seus pais.

    Em certos casos, uma mulher era presa enquanto estava grávida e era preservada até o parto, quando o bebê era entregue a outros, e a mãe "desaparecia".

    O movimento das Avós da Praça de Maio começava a descobrir e revelar as adoções suspeitas. O que fazer quando isso acontecia?

    Com a intenção declarada (talvez sincera) de preservar a "felicidade" e a tranquilidade das crianças, alguns afirmavam que seria melhor deixar as coisas como estavam.

    Afinal, os jovens nem sabiam que eles tinham sido sequestrados e adotados –em certos casos, eles foram registrados como filhos naturais do casal que os adotara.

    Não era melhor deixá-los viver sua existência de classe média abastada? Por que mandá-los de volta para uma avó provavelmente pobre?

    Será que as próprias crianças, se pudessem escolher, gostariam dessa mudança de status social? Será que não prefeririam os brinquedos de seu quarto em Belgrano a uma habitação rural, na província do Chaco –isso sem sequer o pretexto de elas voltarem assim para seus pais?

    À primeira vista, eu achava bizarro que os pais adotivos pudessem amar filhos que eles conseguiram como despojos de uma guerra suja. Como é que alguém fabrica um órfão para depois acolhê-lo como filho? Mas, pensando bem, era frequente na Antiguidade que alguém adotasse escravos comprados no mercado, onde eram vendidos, justamente, os despojos de guerra.

    Seja como for, na época, eu pensava (e continuo pensando) que era necessário dizer a verdade às crianças –e que cada uma delas lidasse como podia com o que fosse revelado.

    Aos que se preocupassem com o "choque" produzido por uma revelação desse porte ("você não é filho de quem você pensava; ao contrário, é filho de"¦"), é bom lembrar que os jovens estão preparados: é muito comum crianças e adolescentes fantasiarem que eles seriam filhos de outros pais.

    A versão mais banal é a de ser um príncipe de sangue, adotado por uns camponeses. Mas também existe a versão inversa, a de ser filho de camponeses, adotado pela família real; quem sabe, um dia, ao conhecer sua origem, você se rebelará contra seus pais adotivos. A história bíblica de Moisés é um exemplo ilustre.

    Por que tantas crianças fantasiam que elas teriam outra origem da que lhes foi dita? Porque tamanho segredo escondido no nosso passado é uma extraordinária promessa de liberdade.

    O segredo nos torna imprevisíveis: os outros não sabem quem somos. Nós mesmos tampouco sabemos direito quem somos.

    Ao levar esse segredo em conta, a gente pode mudar completamente de rumo. E, se persistirmos no mesmo caminho, será com um novo sentido.

    A possível descoberta de um segredo que possa nos transformar e descarrilar nossas vidas é, aliás, um dos grandes atrativos da psicanálise: quem sabe, eu aprenda que tenho uma outra história, da qual eu, assim como sou agora, não poderia mais ser o fruto. Resta-me mudar, não é?

    "Ida", do polonês Pawel Pawlikowski, acaba de ganhar o Oscar de melhor filme estrangeiro. O preto e branco parece perfeito para contar a história de uma Polônia que mal saiu do cinza da Segunda Guerra e já se perdeu no cinza do "socialismo real". Fiquei tocado pelo enquadramento de Pawlikowski, que sugere um mundo em que os pessoas estão sempre nas margens.

    E fiquei tocado sobretudo pelo segredo que é revelado a Ida. Isso você saberá nos primeiríssimos (lindos) minutos (leia sem medo, o spoiler é praticamente nulo): Ida cresceu num convento e logo entrará para a clausura. Antes dos votos, ela deve encontrar a única sobrevivente de sua família, uma tia. Dessa tia, ela vai aprender quem eram seus pais"¦

    Dizer o que ela fará de sua vida seria, sim, um mega spoiler. O que importa é que, graças a esse segredo, sua escolha final, seja ela qual for, terá um novo valor e uma nova significação.

    Nota. Por sorte, a notícia da recidiva do câncer de Oliver Sacks veio pelo texto de despedida que ele mesmo escreveu (http://migre.me/oKKil). Alguém com a curiosidade indomável de Sacks só podia, algum dia, cansar daqui e querer ver como são as coisas "do outro lado".

    contardo calligaris

    Italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Escreve às quintas.

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