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    Contardo Calligaris

    Manifestações

    19/03/2015 02h00

    Na noite de domingo retrasado, dia 8 de março, no quarteirão do meu apartamento, assim que a presidente Dilma começou seu pronunciamento de rádio e TV, explodiu um panelaço: as pessoas diziam que, nesta altura, elas não queriam sequer ouvi-la.

    Da janela, deu para escutar alguns gritos. A maioria era "fora PT" ou "fora Dilma". Uma minoria gritava "Dilma vaca" e houve um "Dilma puta".

    No dia seguinte, recebi alguns e-mails incomodados, se não indignados, com esses insultos. Algumas amigas declaravam que eles eram mais uma prova do machismo ambiente: isso não aconteceria se Dilma não fosse mulher.

    Também me incomodei com aqueles insultos, mas por razões diferentes. Primeiro, porque me pareceu óbvio que, se o presidente fosse homem, apenas haveria uma pequena correção de tiro: ele seria chamado de "veado" ou de "filho da puta".

    É um fato que me surpreende sempre, tanto nos estádios, no trânsito, como na vida política: quando queremos insultar mesmo, recorremos ao sexo -quer seja à orientação sexual do outro, quer seja ao seu (suposto) comportamento sexual ou ainda àquele de sua mãe.

    Só acho uma explicação possível para esse fenômeno: apesar de cem anos de psicanálise e meio século de dita "liberação sexual", o sexo ainda é tão reprimido dentro da gente a ponto de muitos conseguirem reconhecer sua existência apenas nas acusações que lançam aos outros.

    Exemplo: eu não quero nem saber de minhas fantasias de promiscuidade sexual; portanto, para mim, essa promiscuidade só pode ser um vício nefando e vergonhoso de outros -da presidente, por exemplo. Nada a ver comigo, claro.

    Por um lado, sinto um pouco de pena por aqueles que proferem esses insultos (não é fácil viver oprimido pela repressão de seus próprios desejos e fantasias). Por outro, sinto-me incomodado pela suposição de que esses insultos tenham para mim algum valor.

    Vamos lá. Alguém, no trânsito, me chama de filho da puta. Ele quer ofender, digamos, a "honra" da minha mãe e, com isso, me forçar a defendê-la. Mas minha mãe, provavelmente, acharia engraçado que alguém situasse sua "honra" na questão de saber com quem e com quantos ela podia se envolver sexualmente.

    Ela (e eu com ela) pensaria que sua honra estivera em ser uma boa mãe para mim e para meu irmão, uma boa companheira para meu pai e uma resistente antifascista quando fora necessário (e difícil).

    E tudo isso ela poderia ter sido, mesmo se fosse promíscua ou prostituta profissional.

    Em suma, se alguém quisesse ofender a honra da minha mãe, deveria gritar, sei lá, "filho de uma incompetente", "filho de uma oportunista", e não "filho de uma vaca".

    A mesma coisa vale para quem quiser ofender um político.

    Domingo, dia 15, à tarde, fiquei um bom tempo na esquina da avenida Paulista com a alameda Ministro Rocha Azevedo, para sentir o "clima" da manifestação contra o governo.

    Havia muitas crianças pequenas. Bem quando cheguei, duas jovens estavam ajudando um idoso que avançava na calçada se servindo de um andador. A gente parecia estar nos dias logo antes do Natal, quando os paulistanos ficam em massa nessa mesma esquina para ver os papais noéis.

    Havia também muita gente circulando de chinelo de dedo. Não sei se era uma prova de pacifismo ou de inexperiência.

    De qualquer forma, ir a uma manifestação de chinelo significa apostar que não acontecerá nada que possa transformar o passeio numa corrida entre bombas de gás lacrimogêneo -ou seja, é um ato de confiança na vida democrática.

    Mas vamos ao essencial: na manifestação, não vi nenhum cartaz com insultos sexuais. Tampouco escutei gritos parecidos com os que eu tinha ouvido durante o panelaço do dia 8. Talvez isso fosse um efeito do clima "família" (quem vai gritar vaca e puta na frente de crianças?). Mas talvez fosse um índice de que, para a maioria, a manifestação era mesmo propriamente política.

    Um resumo sumário das conversas na esquina em que eu fiquei apontaria a insatisfação geral nesta ideia de fundo: o governo e seu partido parecem mais preocupados em se manter no governo do que em governar a nação, e isso vale para os políticos em geral -usam seu poder para se manter no poder, não para mudar nossa vida para melhor.

    Claro, os cartazes, comparados com as conversas, eram primários, como sempre são, mas políticos: "Fora Dilma", "fora PT", "corruptos" etc.

    Exceção: encontrei um "Dilma, vai para Cuba que te pariu", que misturava a crítica ideológico-política com uma certa nostalgia dos insultos bestas do dia 8.

    ccalligari@uol.com.br

    @ccalligaris

    contardo calligaris

    Italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Escreve às quintas.

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