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    Contardo Calligaris

    A mulher que gostava do Johnson

    23/07/2015 02h00

    No UOL Notícias há um álbum de "selfies perigosos": autorretratos em situações que implicam o risco de perder a vida.

    Os selfies perigosos (fotos ou filminhos) tornaram-se um gênero em si (se você tiver medo de alturas, evite o "Selfie Mais Perigoso do Mundo", no YouTube).

    Entende-se que possamos encarar a morte por valores que, para nós, estariam acima da vida. Está fora de moda, mas faz sentido: morro pela liberdade, para não renegar meus ideais, para salvar a honra etc. Colocando minha vida em perigo eu demonstro a relevância das razões de meu possível sacrifício.

    Mas o selfie perigoso de hoje não serve nenhum valor ou princípio superior; ninguém se expõe ao risco de morte para promover uma causa: o selfie perigoso me enaltece simplesmente por seu perigo.

    Ou seja, mostrar que me exponho ao risco de morte valoriza a mim e à minha vida. Como isso acontece?

    Estou com um pé no abismo ou com a mão na boca de um leão. Alguém pergunta: e daí, panaca?

    Resposta: daí que eu estou aqui na boca do leão e você está na sua poltrona, num táxi ou no metrô.

    Em suma, meu amigo, o panaca é você, porque eu estou vivendo mais do que você. Será que minha experiência extrema não revela que a sua é insossa, insignificante?

    É uma competição na intensidade da experiência vivida. É como se o cotidiano de nossas vidas tivesse perdido seu impacto: à força de viver nele, não percebemos mais nada ou quase, e precisamos aumentar a dose ou a voltagem. O desencanto do cotidiano, aliás, é quase um transtorno das vidas repetitivas e protegidas da modernidade privilegiada.

    Nesse processo, a internet ajudou, mas não teria sido muito diferente sem ela. A internet fez com que a experiência levemente incomum se tornasse banal –ela já era, mas não sabíamos.

    Faz tempo que qualquer um vai para Índia, Indonésia, Tahiti, Mianmar etc., sozinho ou em grupo –é só uma questão de dinheiro. Faz tempo que qualquer um tira uma foto de si mesmo de costas para belezas ou feiuras artísticas ou naturais que foi conferir. A foto turística tradicional sempre foi nos moldes do selfie: de costas para o cenário. Nada mudou.

    Mas o selfie é um grande progresso sobre a foto turística, porque ele é postado, e ninguém mais é convidado para ver as fotos da viagem dos amigos em sofridas sessões na volta das férias.

    Por isso, digo logo, prefiro o selfie à foto turística. De repente, lembro-me das fotos "estratégicas" de um amigo, homossexual, com quem viajei muito nos anos 1970.

    Na época, ser homossexual era mal visto na maioria dos escritórios; nas viagens, ele me pedia para tirar fotos dele na maior proximidade possível com turistas de sexo feminino que por acaso passassem perto da gente, de preferência espalhafatosas, altas e loiras.

    Na volta, no escritório, ele mostrava assim suas conquistas, às quais dava nome e para as quais ele inventava uma história: "Essa é a Ingrid, uma sueca, ela estava viajando com o irmão, foi uma coisa à primeira vista etc.".

    As fotos turísticas (ou os selfies turísticos, dá na mesma) são como as fotos do meu amigo: elas tentam vender a ilusão de uma experiência que não foi vivida e da qual só existiu o cenário, nos fundos.

    Não há nada de estranho nem de novo na ideia de que arriscar a vida seja o jeito mais rápido para ser levado a sério e provar que a gente vive ou viveu mais do que os outros. O selfie perigoso também não é uma novidade absoluta.

    Em 1967, eu viajava pela Índia, subindo em direção ao Nepal, com um grupinho de amigos hippies, europeus e americanos.

    Num café da manhã, perto de uma caverna onde fomos visitar (e venerar) uma enorme estátua do Buda, encontramos uma senhora texana que nos disse que Johnson tinha razão de bombardear Laos e Camboja e que deveríamos voltar para as nossas casas (nos Estados Unidos ela achava que fôssemos todos norte-americanos) e nos alistar, em vez de ficar andando pelo mundo de cabelo black power.

    Dois meses depois, em Katmandu, um de nós estava com um enorme abcesso purulento no interior do cotovelo. Era difícil encontrar antibióticos e um bisturi limpo.

    O amigo me pediu para que tirasse uma foto do abcesso e comentou: essa é uma foto souvenir que a mulher que gosta do Johnson não vai levar para casa.

    No fim, tudo deu certo, e não foi preciso que meu amigo morresse para que a experiência dele não se confundisse com a da mulher que gostava do Johnson.

    contardo calligaris

    Italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Escreve às quintas.

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