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    Contardo Calligaris

    Acossado

    06/08/2015 02h00

    Anunciei a alguns amigos que assistiria ao novo filme de Jean-Luc Godard, "Adeus à Linguagem". Todos folgaram em saber que eu iria –literalmente, ou seja, acharam que meu relato lhes bastaria, e talvez eles pudessem, por uma vez, se autorizar a ser "folgados", deixando de ver o filme.

    Pensei: agora não tem jeito, vou ter que ver o Godard. Obviamente, saí da sala "acossado" pela obrigação de dizer (para eles e para mim) o que achei do filme. De fato, constatei que eu poderia escrever dois comentários absolutamente opostos.

    O mais fácil, por minha formação francesa e política, seria bajular, mobilizar toda a artilharia dos anos 1960 e 70, de "Tel Quel" a Baudrillard, para mostrar que Godard continua revolucionando o cinema e o mundo. Exatamente nessa direção, aliás, na "Ilustríssima" de domingo passado, Daniel Augusto comenta o recente livro de Didi-Huberman sobre Godard ("Passés Cités par JLG", Minuit).

    Mais honesto seria assinalar que há uma esperança datada (dos anos 1960) segundo a qual a revolução sexual e a revolução formal nas artes mudariam a cara do mundo, acabariam com a exploração do homem pelo homem e inventariam uma nova subjetividade. Em suma, pensávamos que a revolução seria ganha nas camas, nos ateliês e nos sets de cinema: fomos desmentidos repetidamente.

    Com essa premissa, eu compartilharia o mau humor dos espectadores que saíram da sala antes do fim. O uso do 3D por Godard me deu vontade de correr ao consultório do meu oftalmo para verificar se eu tinha catarata em ambos os olhos.

    É difícil dizer se houve imperícia no uso da nova técnica. Mas o fato é que "Adeus à Linguagem" se parece com o exercício de um jovem videomaker irritado.

    Claro, querendo ser godardiano, eu diria que o uso do 3D por Godard é subversivo, oposto ao hollywoodiano; e que martirizar o espectador é um jeito de ajudá-lo a não se deixar capturar pela história e pelas personagens (como se, nos últimos filmes de Godard, esse perigo existisse"¦).

    Voltando ao mau humor, observaria que as citações filosóficas e as frases de efeito, em Godard (no mínimo, desde "Filme Socialismo"), parecem servir para dar a um espectador medíocre e inculto a sensação de estar meditando profundamente, se não (pior) a ilusão de navegar na alta cultura –enquanto ele está apenas naufragando nos clichês.

    Querendo ser godardiano, eu diria que as ditas citações criticam a si mesmas, e a intenção de Godard seria justamente a de reduzir a suposta alta cultura aos bilhetes escondidos na embalagem dos chocolates Baci Perugina ou aos oráculos dos biscoitinhos chineses.

    A mesma duplicidade apareceria se comentasse a ausência de narrativa e de roteiro, o martírio dos atores e, em geral, uma certa vulgaridade da rebeldia infantil (piadas de peido para provar que somos todos iguais, mamma mia).

    No fim, deixei de lado a brincadeira da dupla resenha e pensei que talvez Godard estivesse nos falando dele mesmo. Foi quando comecei a gostar do filme, ou, ao menos, a tolerá-lo, achando-o imensamente triste.

    Godard nos fala do fim da linguagem que foi a dele e dos críticos que sustentaram a nouvelle vague, ou seja, ele nos fala do drama de esperanças abstratas que produziram fórmulas congeladas e pomposas, com as quais a gente se alimentou durante décadas.

    Godard não consegue mais contar uma história, não porque contar uma história seria o próprio da arte burguesa, mas porque morreu aquela grande narrativa dos séculos 19 e 20, que era o sonho do socialismo futuro.

    Godard não aceita que o anseio por formas novas dos anos 1960 e 70 não tenha transformado o cinema. O videomaker não substituiu o cineasta.

    Mas isso não aconteceu porque seríamos todos alienados a Hollywood; aconteceu pela mesma razão pela qual a poesia concreta foi ótima, mas não substituiu o romance, nem o conto, nem a própria poesia –ou pela mesma razão pela qual a "arte povera" foi ótima, mas não acabou com a pintura. Ou seja, aconteceu porque a esperança que a "revolução" viria pelas formas era falsa.

    O triste é que, uma vez perdida a esperança de revolucionar o mundo com uma forma artística nova, só parece sobrar, em Godard, uma decepção amarga, sem muito carinho pela vida.

    Os outros da nouvelle vague se deram melhor: em François Truffaut, Éric Rohmer, Claude Chabrol, Alain Resnais, Agnès Varda, e mesmo em Chris Marker, nunca morreu o carinho pela vida e pelas histórias que a contam.

    contardo calligaris

    Italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Escreve às quintas.

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