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    Contardo Calligaris

    A fórmula do amor

    15/10/2015 02h00

    "Eu tenho o gesto exato, sei como devo andar / Aprendi nos filmes para um dia usar / Um certo ar cruel de quem sabe o que quer / Tenho tudo planejado pra te impressionar / Luz de fim de tarde, meu rosto em contraluz / Não posso compreender, não faz nenhum efeito a minha aparição; será que errei na mão? / As coisas são mais fáceis na televisão."

    Paula Toller, decepcionada por não conseguir fazer que o outro se apaixone por ela, promete encontrar um dia "A Fórmula do Amor" –título da última música do álbum "Educação Sentimental", do Kid Abelha, em 1985, que era um dos meus preferidos nos anos em que viajava entre França e Brasil.

    A fórmula do amor da qual fala a música serviria para fazer que um outro se apaixone por nós –assim como os "trabalhos" prometidos nos cartazes pendurados nos postes paulistanos: faço seu amor ficar preso a você para sempre ou voltar, se ele tiver se afastado, resultado garantido, dinheiro de volta se não funcionar.

    Bom, eventualmente, todos podemos gostar da ideia de que alguém se apaixone por nós. Mas, convenhamos: não é uma ideia muito generosa. A prova disso é que poucos estão a fim de se apaixonar por um outro. Ou seja, o "apaixonamento" seria bom para quem é amado; já para quem se apaixona, nem tanto.

    Não foi sempre assim. Publicando "Os Sofrimentos do Jovem Werther" (1774), Goethe inaugurou uma época (que não acabou completamente: ainda há um pouco daquele espírito em todos nós) em que o romântico acha bom e desejável apaixonar-se perdidamente. Isso se dá um pouco pela força da emoção, pela qual a gente se sentiria "vivo", um pouco por uma fantasia de entrega (quase erótica) pela qual nosso amado se tornaria nosso dono e única razão de viver.

    Mais de um século mais tarde, o "apaixonamento" amoroso continuava seduzindo muitos (como ainda seduz alguns), mas já começava a ser considerado como um transtorno grave e dificilmente curável.

    Em 1976, Roland Barthes, sofrendo do "apaixonamento" que o levou a escrever "Fragmentos de um Discurso Amoroso", consultou Jacques Lacan. O psicanalista lhe disse que análise ou terapia não o curariam das dores daquele amor; mas, se ele se tratasse, era possível esperar que, no futuro, tivesse a sabedoria de se apaixonar menos. Ou seja, o amor é um transtorno que é mais fácil prevenir do que curar.

    Alguém dirá que, sem sofrimento amoroso, Barthes não teria escrito os "Fragmentos" (e Goethe, o "Werther"). Concordo, mas é arriscado se apaixonar só para a ver se a gente tem um grande talento de escritor.

    Fora essa eventualidade remota, apaixonar-se para o quê? A paixão amorosa, além de sofrida, é um exercício narcisista: a gente idealiza um outro, enxerga nele todos nossos ideais na esperança de que, se ele nos amar, a gente se sinta amado por eles, ou seja, por nós mesmos.

    Hoje, se alguém inventasse uma pílula do amor, você a tomaria? Ou a usaria como uma espécie de "boa-noite Cinderela" sentimental, drogando alguém para que ele se apaixonasse por você?

    Dúvida e tormento: uma vez que fosse induzido a amar você por uma pílula, esse amor seria "sincero"?

    Uma pílula do amor não é propriamente ficção científica. É possível imaginar uma que produza em alguém todos os efeitos da "apaixonamento": sudorese, inapetência, aceleração cardíaca, liberação de dopamina e outros neurotrasmissores envolvidos na paixão amorosa. O que faltaria para que esses efeitos constituíssem um "apaixonamento"?

    Claro, a pílula não decidiria por quem a gente se apaixona. Será que, como os pintinhos saídos do ovo, nos fixaríamos no primeiro ser que aparecesse na nossa frente? Ou será que o amado seria escolhido a partir de uma consulta aos arquivos de nossa memória? Nesse caso, poderíamos amar por causa da pílula, mas não escolheríamos nosso objeto de amor à toa...

    Assisti a "A Reação", de Lucy Prebble, na direção de Clara Carvalho, que estreia nesta sexta (16) no teatro Vivo, em São Paulo. Ri e me diverti. E pensei um pouco sobre o amor porque, na peça, é testado (em sujeitos "normais") um novo antidepressivo que induz uma euforia parecida com o "apaixonamento". Mas "A Reação" é muito mais que isso.

    Se você tomou (ou prescreveu) antidepressivos ou outros psicotrópicos, se toma e se pergunta quando vai parar, se acha que talvez estivesse na hora de experimentar, ou seja, se vive no século 21, não perca a peça.

    contardo calligaris

    Italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Escreve às quintas.

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