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    Contardo Calligaris

    No ático ou nos fundos

    22/10/2015 02h00

    No domingo, 4 de outubro, em São Paulo, na rua Piauí (Higienópolis), uma mulher deixou uma sacola encostada em uma árvore. Ela se afastou e ficou espreitando de longe até que alguém se desse conta de que a sacola continha uma bebê; só então sumiu.

    O episódio foi gravado por câmeras de segurança: é penoso pelo drama do abandono e é enternecedor pela espera, que revela a inquietude da mulher com o futuro da bebê. As gravações, justamente, permitiram que, na quarta (7), a polícia identificasse a mulher, que foi presa na sua residência e responderá (em liberdade) por abandono de incapaz.

    Sandra, 37, é empregada doméstica. Ela tem um filho, adolescente de 17 anos, que está na Bahia e para quem ela contribui mandando parte de seu salário. Ela tem também uma filha de três anos, que vive com ela, no emprego, no quarto de empregada onde ela mora e onde, sozinha, às escondidas, teve o parto que deu à luz mais uma menina.

    Sandra contou ter escondido a gravidez da patroa, por medo de perder emprego e moradia. Quanto ao pai da bebê abandonada, ela só sabe o primeiro nome e que dançou forró com ele nove meses atrás.

    Para Sandra, aparentemente, anunciar a gravidez seria abusar da generosidade de seus patrões, que já a abrigavam com uma filhinha. Uma coisa é oferecer moradia a uma empregada, outra coisa é estender o benefício à filha pequena, outra coisa ainda é encarar a chegada de mais um bebê no quarto dos fundos (o qual, às vezes, está ao lado da cozinha).

    Faz sentido, não é? Só que a moradia, no caso, não é bem "oferecida". Sobre o aspecto trabalhista do caso que nos interessa, consultei meu amigo e contador, Paulo Lourencine: ele entende que, para as domésticas que moram no serviço, com filha ou sem filha, a moradia é parte integrante do contrato de trabalho, ou seja, elas ganham salário, moradia e alimentos.

    O direito a dispor dessa moradia não seria interrompido se a empregada, por exemplo, ficasse doente. Mesmo em caso de doença prolongada, a empregada (que não pode ser despedida por estar doente) pararia de trabalhar, passaria a receber pelo INSS, mas ficaria morando nas acomodações que são dela por contrato.

    Qualquer patrão pode achar a situação bizarra e constrangedora, mas o quarto de quem trabalha e mora em casa não é uma concessão ou uma regalia: ele é um direito –e, cá entre nós, é também a única casa de quem mora nele.

    Com a gravidez não é diferente. Sandra poderia ter anunciado que estava grávida. Ela não seria despedida e permaneceria no quarto de empregada cuidando da nenê, no mínimo durante os quatro meses de licença maternidade. E ainda restaria decidir se ela poderia ser despedida depois disso. Ter uma filha a mais não parece ser uma justa causa, e, se a qualidade dos serviços permanecer a mesma"¦

    Morar na casa de alguém produz intimidades e dependências imprevistas. Por exemplo, Sandra estava com medo de ser despedida e despejada? Ou estava envergonhada como uma filha que engravidasse no baile? Talvez as duas coisas.

    A empregada que mora na casa de seus empregadores é uma espécie de hóspede na casa dos outros ou deve pensar que o quarto dos fundos, que ela ocupa, é a casa dela? Se for a casa dela, ela poderia, então, trazer o dançarino de forró para dormir com ela, certo? Por que não? À condição que aconteça na folga".

    A arquitetura é o destino. Na época em que os europeus se permitiam domésticos e domésticas morando no serviço, tanto nos palácios quanto nos edifícios de apartamentos (do fim do século 19 ao começo do século 20), os quartos de empregada eram o último andar do prédio.

    Gélidos no inverno e quentíssimos no verão, de acesso desconfortável (os edifícios não tinham elevador), esses áticos são hoje prezados por estudantes e jovens. Mas o que importa é que os quartos de empregada e empregado eram separados da moradia dos patrões. Naquela época, certamente, o direito não protegeria uma doméstica que engravidasse (ela seria despejada e despedida), mas, nos quartos do último andar, era possível uma vida "autônoma".

    A arquitetura nacional, com os "quartos de empregada"–nos fundos, mas dentro do apartamento–, além de permitir a exploração noite adentro, alimenta a ilusão de que os empregadores estejam "hospedando" sua criada, como se o emprego fosse uma espécie de tutela benevolente. É aquela frase que ainda se ouve nas fazendas: pegamos esta menina para criar".

    contardo calligaris

    Italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Escreve às quintas.

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