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    Contardo Calligaris

    Primeiro Assédio

    12/11/2015 02h00

    No movimento #primeiroassedio, as mulheres narram o primeiro assédio sexual que elas sofreram –geralmente na infância (por exemplo, na Folha de domingo passado ).

    Cada mulher tem uma história (mais ou menos sinistra) para revelar –são fatos que, às vezes, nunca contou para ninguém, por pudor, por tristeza e por uma vergonha que não deveria ser dela, mas do assediante.

    Esses relatos, no mínimo, nos tornarão mais atentos às formas escusas do assédio: gestos e palavras das quais "esquecemos" facilmente a significação sexual e a violência. 

    Será que vou brigar com o alfaiate que está medindo a roupa da primeira comunhão de minha filha? Aviso: sua filha talvez se esqueça de que a mão do moço subiu ao longo da perna dela, mas ela não se esquecerá de que você estava lá e não a protegeu.

    Um padre passou a mão na minha coxa enquanto me escutava em confissão, na sacristia da igreja de via Ponzio. Tanto faz, pensei. Mas me incomodou que Deus (que deveria estar em casa, naquela sacristia) não fizesse nada e que minha avó, quando lhe disse o que tinha acontecido, se limitasse a pedir para eu não contar para meu pai, que poderia encher o padre de porradas.

    Desde então, fiz o que faz qualquer criança assediada: não falei daquilo para ninguém.

    Uma leitora, nesta altura, já está indignada: estamos falando das mulheres, o que tem a ver falar do padre que passava a mão na sua perna?

    É a essa pergunta que queria responder:

    1) Para meninas e meninos, a sexualidade sempre vem de fora –de um colega que sabe um pouco mais, de uma página de livro, da internet, de algo visto pela fresta de uma porta, ou da investida (violenta ou não) de um adulto. Essa é a regra. A sexualidade humana não é o fruto de um desenvolvimento interno "natural".

    Diferentes dos outros mamíferos, não nos excitamos porque algo nos assinala que está na hora de a gente se multiplicar: a excitação, para nós, não depende do cheiro da fecundidade do parceiro ou da parceira, mas das fantasias que elaboramos (e as elaboramos também a partir do que aconteceu quando os outros nos fizeram descobrir a sexualidade).

    As modalidades dessa descoberta (por exemplo, se foi violenta, forçada ou prazerosa) são significativas, claro, mas não configuram uma sina. Por exemplo, uma menina encontra um site pornográfico aos sete anos: é um susto, mas o susto, em si, não diz se ela entenderá que deve odiar aquilo ou que deve aprender com as atrizes. Essas escolhas (e outras mais complexas) dependem da fantasia que construirá a partir do susto, com a ajuda de mil palavras ouvidas ou lidas e de mais mil imagens encontradas. 

    2) Até aqui meninos e meninas parecem passar por experiências parecidas. Mas há, sim, uma tremenda diferença entre o assédio e abuso sexual de uma menina e o de um menino; a diferença é que, ainda hoje, a menina é chamada a viver tudo o que desperta seu sexo como sendo uma vergonha, enquanto o menino, em geral, é encorajado a viver o despertar de sua sexualidade como uma festa.

    Ou seja, o primeiro assédio é tremendamente doloroso para as meninas porque ele desperta uma sexualidade da qual a cultura e o próprio assediante querem que a menina se envergonhe já.

    O medo da sexualidade feminina e sua negação são o ingrediente básico do machismo e do ódio machista contra as mulheres.

    Como me safei um pouco disso? Tinha sete ou oito anos. Quando meus pais saíam, Maria me levava para a cama dela e usava uma das minhas mãos para se esfregar. O que sobrou disso em mim? Provavelmente, sobrou minha convicção precoce de que as mulheres têm desejo sexual, tanto quanto eu ou qualquer homem.

    Poderia ter deduzido algo diferente e catastrófico quanto às minhas possibilidades de ter uma vida sexual boa, ou seja, animada e prazerosa. Tive sorte: o assédio de Maria se conjugou com o que eu aprendia do meu irmão, dos amigos, dos livros nas prateleiras mais altas da biblioteca do meu pai, de forma a me levar à simples conclusão de que ela, depois de um dia de trabalho doméstico, gostava de um prazer noturno –quando dava.

    Enfim, tive sorte, como disse, sorte de estar numa família em que o sexo era uma coisa boa e sorte de que Maria não queria me assustar, nem gozar de minha infância, nem me impor sua violência. Aparentemente, eu era o pequeno parceiro que aquela jovem simples, quase analfabeta, podia encontrar, na solidão da vida longe de seu vilarejo.

    contardo calligaris

    Italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Escreve às quintas.

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