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    Contardo Calligaris

    Terroristas e invasores

    26/11/2015 02h00 - Atualizado às 16h09 Erramos: esse conteúdo foi alterado

    Depois dos atentados de Paris, num discurso perante o Parlamento, o presidente da França, François Hollande, declarou: "Temos que fazer nossa Constituição evoluir para permitir que os poderes públicos atuem, respeitando o Estado de Direito, contra o terrorismo de guerra".

    Claro, aqui está a grande dificuldade. As forças de segurança pedem poderes excepcionais para serem mais eficientes em reprimir o terrorismo e prevenir o terror.

    Diante dos mortos e da ameaça que paira sobre nós, quem lhes dirá que não? Se elas puderem xeretar na vida da gente, escutar nossas conversas, ler nossos e-mails, tudo isso sem autorização prévia do Judiciário, que importância tem? Ou será que você tem algo para esconder?

    Quem não tem nada para esconder não tem o que temer –você não acha? Santa ingenuidade: o terrorismo ganhará, de fato, se ele nos levar a alterar, mesmo minimamente, as condições básicas do Estado de Direito.

    Carl Schmitt, jurista e filósofo nazista (por quem tenho uma simpatia muito limitada), dizia justamente que a soberania do Poder Executivo consiste na capacidade de instaurar o "Estado de exceção". E, mesmo que o Poder Executivo limite ou suprima brutalmente os direitos fundamentais de seus cidadãos, se ele decretar legalmente o Estado de exceção, esse governo continuará sendo legítimo.

    Por esse caminho, aliás, Schmitt chegava a demonstrar que Hitler, de fato, era representante e defensor da legalidade do Estado alemão.

    Mas não é preciso chegar a tanto. A espionagem contra os cidadãos dos EUA e do mundo, que foi revelada por Edward Snowden, ou a transformação da encarceração em tortura na prisão de Abu Ghraib, que foi revelada por Seymour Hersh, seriam todas "legais", visto que, no caso, a "guerra ao terror" supõe e pede a existência de um Estado de exceção.

    Cuidado, as razões ou os pretextos para a existência de um Estado de exceção não existem só nos EUA e são contínuos e infinitos. Escolha: o risco de atentado na Olimpíada do Rio? O crime endêmico nas capitais brasileiras? A corrupção tão endêmica quanto?

    Giorgio Agamben, filósofo italiano contemporâneo, escreveu um livro dedicado, justamente, ao "Estado de Exceção" (Boitempo): ao segui-lo, a gente se pergunta se nós, modernos, tivemos mesmo, em algum momento, a experiência de uma democracia que não fosse limitada pelo caráter "excepcional" (ou declarado excepcional) das circunstâncias.

    A propriedade essencial dos governos ditos democráticos parece ser seu poder de instaurar Estados de exceção que suprimem ("temporariamente") a própria democracia. Assim vamos, de estado de exceção em outro.

    Terror à parte, na Europa de hoje, uma das razões que parecem "justificar" um Estado de exceção é a chegada em massa de refugiados –da Síria e, mais geralmente, do Oriente Médio e da África.

    O problema, dizem, não é apenas numérico, mas cultural. Eles seriam inassimiláveis –ou, no mínimo, a assimilação de sua diferença produziria uma transformação radical e indesejada da sociedade e da cultura europeias.

    Nasci em Milão, na Lombardia, no norte da Itália. O nome da região vem dos lombardos, escandinavos que invadiram a Itália no fim das guerras góticas, a partir de 570 d.C. Eram uma horda inquietante, que ninguém parou: criaram um reinado, que durou até Carlos Magno conquistar a região e a integrar ao seu império, em 774.

    Naquele fim do século 6, os cidadãos das cidades cristãs ao norte do rio Pó deviam pensar que o pouco que sobrava da civilização romana, com a chegada dos lombardos, acabaria em barbárie. Houve, de fato, barbáries e guerras (poupo os detalhes), mas, a longo prazo, entre lombardos e romanos, quem assimilou quem? E será que não somos mais interessantes e complexos por sermos filhos de mais uma mistura?

    Enfim, uma pergunta, que se coloca do ponto de vista genérico da cultura ocidental contemporânea (seja ela laica ou não). Somos uma cultura que faz apologia explícita da diversidade; será que existe, para nós, uma diferença cultural que de fato seja não assimilável? E, caso ela exista, qual seria sua característica?

    Em outras palavras, será que existem culturas que sejam antagônicas à nossa a ponto de não poderem nos enriquecer e de serem efetivamente nossas inimigas?

    Tentarei responder na semana que vem.

    contardo calligaris

    Italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Escreve às quintas.

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