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    Contardo Calligaris

    Inimigos

    03/12/2015 02h00

    Temos crenças e convicções que são específicas da família, da religião, do país e das tribos aos quais pertencemos. E podemos nos orgulhar dessas ideias particulares.

    Mas somos filhos de uma cultura que acredita na diversidade. O que nos define e que temos em comum é a ideia de que famílias, tribos, religiões e nacionalidades diferentes podem conviver. E há quem diga que nossa diversidade é uma força: somos melhores e mais criativos por convivermos com outros diferentes da gente.

    Para que isso seja possível, a tolerância não basta. No mínimo, é preciso evitar a tentação de impor nossas crenças e nossos costumes aos outros.

    Se pertencemos à maioria, sempre achamos que somos o padrão que todos poderiam seguir "naturalmente", seja qual for sua crença. Mas não existe um "default": o suposto padrão "natural" é apenas a regra dos mais numerosos.

    Um exemplo: achamos natural que os banheiros públicos sejam divididos em "homens" e "mulheres". Mas pense num cidadão transgênero diante de uma escolha forçada que, para ele ou ela, será sempre bizarra, de qualquer forma.

    Em suma, lutamos a cada dia para inventar um convívio democrático que respeite a diferença de todos. Resta a pergunta: será que existe, para nós, uma diferença cultural que, por sua natureza, não possa fazer parte do nosso convívio?

    Em outras palavras, embora a gente valorize todas as diferenças, será que existem sistemas de crenças e normas que sejam nossos inimigos? Hélio Schwartsman, na Folha, colocou uma pergunta análoga ["Opinião", 18.nov, pág. A2.

    No pós-guerra europeu, surgiram partidos neonazistas e neofascistas. Muitos não queriam reconhecer oficialmente esses partidos; eles não discutiam as questões ideológicas de fundo (respeitavam o direito à diversidade até de fascistas e nazistas), mas propunham um argumento formal: será que podíamos autorizar partidos que tinham o projeto explícito de destruir a própria ordem democrática que lhes dava a palavra? Fascistas e nazistas chegaram ao poder por via democrática e logo suprimiram a democracia: repetiríamos o mesmo erro?

    Outros tantos eram a favor da legalização de fascistas e nazistas. Segundo eles, nossa força estava no fato de aceitarmos conviver até com diferenças que eram opostas ao próprio convívio. E se um dia eles chegarem ao governo e acabarem com a democracia? Pois bem, eles respondiam, resistiremos de novo, armas na mão.

    E hoje? Existem sistemas de normas e crenças antagônicos à nossa vontade comum de viver entre diferentes? Ou seja, existem sistemas que seriam efetivamente nossos inimigos? E qual seria a caraterística desses sistemas?

    Pensei que o proselitismo pudesse ser a marca dos que não caberiam entre nós. Mas a tentativa de convencer o outro (para que adote nossas crenças) faz parte do convívio democrático.

    Os que nossa cultura não tem como incorporar não são os que tentam apenas converter os outros, mas os que sentem a necessidade ideológica (ou psíquica e patológica) de forçar todos a agir segundo as crenças e os costumes que eles escolheram.

    Na lei islâmica (charia), há prescrições que, segundo nossos códigos de convivência, seriam criminosas (por exemplo, o direito de fazer escravos). Mas, fora essas prescrições específicas (que muitos muçulmanos recusam), a lei islâmica poderia ser mais uma diferença no nosso convívio. O que qualifica o extremismo islâmico como nosso inimigo não é o respeito à lei islâmica, mas a necessidade de forçar todos os outros a agir segundo a lei islâmica.

    Outro exemplo, menos exótico. Para uma boa parte da bancada evangélica do Congresso, os outros também são infiéis, cujo comportamento deveria ser "coagido": a bancada tenta legislar para inscrever suas crenças e normas no texto da lei comum.

    Tome o caso da família: posso legislar para ter o direito de celebrar o que é casamento para mim (por exemplo, um laço indissolúvel diante de Deus), posso legislar para que qualquer laço estável nascido de crenças e costumes diferentes seja reconhecido como família. Mas, se eu legislar para impedir que os laços estáveis dos outros sejam reconhecidos como família, agirei como um inimigo do convívio democrático. Tanto quanto um extremista islâmico.

    Em suma, a democracia tem inimigos. Por sorte, eles são fáceis de serem reconhecidos: são os que querem impor suas crenças e normas como obrigação para todos.

    contardo calligaris

    Italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Escreve às quintas.

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