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    Contardo Calligaris

    Abusados pelos governantes

    17/12/2015 02h00

    Em 2010, os pais adotivos de Justin, 7 anos, decidiram devolvê-lo para o orfanato. Um ano depois da adoção, eles (norte-americanos) enfiaram o menino (russo, originalmente) num avião de volta para Moscou, com uma carta no bolso: "Sorry, Justin é um terror, intolerante, destrutivo, violento e incendiário".

    Segundo os pais adotivos, a origem da violência do menino estava nos anos de abuso no orfanato. Segundo os russos, a violência dos pais era pior que a do orfanato. Seja como for, psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais (russos, americanos ou outros) concordam: os abusos sofridos na infância não são facilmente curados ou compensados por carinho, sorriso e conforto. É quase uma regra: crianças que foram abusadas abusarão.

    Na "New Yorker" de 7 de dezembro, um artigo de Rachel Aviv sobre "o dilema do refugiado" conta a história de Nelson Kargbo, um menino de Serra Leoa que foi recrutado à força como criança-soldado, passou a infância matando e se drogando e, no fim, reencontrou sua família e, com ela, foi aceito como refugiado pelos EUA. Kargbo quase foi expulso dos EUA –como Justin, e por razões parecidas.

    Podemos chamar de abuso qualquer crueldade da qual somos vítimas. Mas o verdadeiro abuso é aquela violência que transforma sua vítima profundamente, deixando-a convencida de que qualquer lei ou regra vale pela força bruta de quem manda –e de que, inversamente, a única razão de respeitar uma regra é a fraqueza de quem obedece.

    Para Kargbo e Justin, uma autoridade vale só pela violência que ela exerce; com isso, a violência se reproduz: ela se impõe até o abusado se descobrir mais forte do que seu abusador.

    Falo em Kargbo e Justin, e penso na gente. Não somos muito diferentes dos dois meninos: o desrespeito e o abuso que sofremos de nossos governantes só podem nos dispor a praticar, nos outros e na coisa pública, o mesmo desrespeito e o mesmo abuso. Ou seja, o abuso dos governantes nos transforma, e não é para melhor.

    Nos anos 1980, um psicanalista italiano, Sergio Finzi, publicou um ensaio, "Il Padre Anal" (o pai anal), retomado em "Lavoro dell'Inconscio e Comunismo" (trabalho do inconsciente e comunismo).

    Em epígrafe, Finzi colocava uma frase de Georges Bataille (em "Le Petit", de 1943): "O que mais me consterna: ter visto, um grande número de vezes, meu pai defecando. Ele descia de sua cama de cego paralisado ["¦]. Descia dificilmente (eu o ajudava), sentava-se no vaso, de camisola, quase sempre mal cuidado ["¦], o olhar fixo para frente".

    A face tradicional da figura paterna é uma referência inspiradora e exemplar –um adulto admirado, professor ou professora, governante ou governanta etc. Existe, aliás, um tipo de neurose (a histeria) que se dedica a investigar as falhas eventuais dessa figura aparentemente impecável.

    Finzi chamava a atenção para outra figura paterna, igualmente necessária: um pai fracassado, impotente e por isso mesmo mais próximo da gente. Outro tipo de neurose (a obsessão) se dedica a proteger essa figura e a esconder sua fraqueza.

    Enfim, existe mais uma figura paterna, que não é necessária e que talvez ninguém mereça, mas que, às vezes, acontece: é um pai violento, medíocre e propriamente desprezível.

    Para Kargbo e Justin, que sofreram nas mãos de uma autoridade violenta e desprezível, ficou difícil acreditar que haja adultos diferentes do funcionário do orfanato ou do senhor da guerra de Serra Leoa. Quanto à gente, fica cada dia mais difícil acreditar num governo futuro que não seja a simples expressão da violência gananciosa dos governantes.

    Na clínica, em geral, quem lidou com um pai estuprador, violento e mentiroso tem dois caminhos possíveis: ele pode se tornar um defensor obstinado da lei (ser delegado, promotor, policial) ou, então, ele pode se tornar tão violento e bandido quanto a figura abusadora.

    Em ambos os casos, não é raro que apareça um desânimo profundo, uma sensação de abandono e uma vontade de não existir. Na tragédia grega, a vontade de sumir por causa de uma herança maldita se expressava assim: quisera eu nunca ter nascido para não ter de pagar pelos crimes cometidos por esse meu pai.

    Desânimo a parte, a mediocridade moral dos governantes institui o abuso e a violência como regras e exemplos de funcionamento social. Ela não corrompe apenas as trocas sociais, ela corrompe cada um de nos, no âmago.

    contardo calligaris

    Italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Escreve às quintas.

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