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    Contardo Calligaris

    Mal-educados ou educados mal?

    21/01/2016 02h05

    O prédio em que estou, em Nova York, tem uma piscina coberta no último andar. Quando viro a cabeça para respirar, vejo o céu, os prédios e, às vezes, a neve lá fora.

    Nesta estação, os moradores preferem esteiras e bicicletas ergométricas. Frequentemente, nado sozinho. Mas, mesmo quando somos dois ou três nadando, há um clima simpaticamente silencioso.

    Nos EUA, em qualquer piscina pública (e, no verão, nas praias), é obrigatória a presença de um salva-vidas, que fica sentado numa cadeira de madeira branca, parecida com a do juiz numa partida de tênis, bem alta –para enxergar melhor.

    No meu prédio, a presença e a atenção do salva-vidas parecem excessivas para uma piscina de três raias, 20 metros de comprimento e 180 cm de profundidade do lado mais fundo.

    Numa tarde da semana passada, éramos dois nadando na piscina. De repente, apesar dos ouvidos tapados pela touca de borracha e da cabeça na água, ouvi um estardalhaço de gritos insensatos. Parecia que a piscina estava sendo invadida pela excursão não monitorada de uma classe de estudantes do primeiro grau.

    De fato, era só um menino, 7 ou 8 anos, mas que gritava como uma turma inteira. Não dava para entender nada de seus gritos, e não estou certo que ele estivesse querendo se comunicar: gritava, mas sem angústia, pelo prazer de fazer barulho.

    Ele era acompanhado por três mulheres –suponho que uma fosse a mãe e as duas outras, uma babá e uma empregada. (Babá aos 8 anos? Pois é.) O menino não tinha dificuldade motora alguma, mas as três o preparavam para entrar na água. Duas retiravam a camiseta, enquanto outra, ajoelhada, tirava os chinelos. Ele ficava parado, como o papa quando está sendo vestido e desvestido –só que o papa geralmente não grita.

    Uma vez retirados os chinelos e a camiseta, tratou-se de colocar no menino os óculos para proteger os olhinhos do nadador. Se ele o fizesse sozinho, seria fácil; mas experimente alguém fazendo isso em você: claro que a borracha vai se prender no cabelo. Mais gritos.

    Em compensação, o que elas poderiam ter feito, mas não fizeram, era levar o menino para o chuveiro (cartaz: "Proibido entrar na piscina sem passar pelo chuveiro") e impedir que ele pulasse na água (cartaz: "Proibido mergulhar").

    Logo chegou outro menino, amigo ou irmão, acompanhado por mais uma babá. Os gritos incompreensíveis não duplicaram porque não havia como eles crescerem além do que já era. Os dois meninos ficaram então pulando na água e subindo pela escada –ótima brincadeira, mas por que sempre gritando? Por que manifestar sua excitação parecia mais importante do que brincar?

    A resposta são as quatro (aparentemente) adultas, que observavam extasiadas, dando elas mesmas gritos ora de maravilha, ora de espanto diante da performance dos dois.

    Numa piscina daquele tamanho, com um salva-vidas de plantão, qual era a razão da presença das quatro mulheres? Por que elas não aproveitavam para deixar de cuidar dos marmanjos e começar a cuidar de seus desejos? Isso se elas tiverem desejos fora o de cuidar dos marmanjos...

    Aposto que, se elas estivessem desejando alhures, a bagunça pararia e os meninos brincariam sem se sentir na obrigação de oferecer o espetáculo de sua extraordinária infantilidade.

    Os meninos não eram mal-educados. Eles eram educados mal, que é pior. Digo isso porque eles gritavam? Não, claro. Eles eram educados mal porque eram privados da autonomia de tirar chinelos e camiseta. E porque ninguém lhes mostrava que é possível se sentir livre respeitando as regras básicas de uma piscina.

    Mas, sobretudo, eram educados mal porque nada lhes sugeria que eles pudessem ser apenas uns entre outros. Para os cuidados e os olhares extasiados das quatro mulheres, eles precisavam manter uma cansativa e barulhenta encenação de sua unicidade. Nada demais naquela ocasião (só uns gritos), mas a crença na unicidade privilegiada da gente se transforma, ao longo da vida, na cansativa obrigação de ser sempre "diferente" e extraordinário.

    Conselho: quando a criança grita "olha mamãe!", o melhor é olhar, sim, mas com a expressão de todo o tédio que a cena merece, de fato.

    Com o eco do espaço da piscina eu não tinha entendido qual língua falavam as crianças e suas babás e admiradoras. Na saída, perguntei. Alguém adivinha de onde elas vinham?

    ccalligari@uol.com.br

    @ccalligaris

    contardo calligaris

    Italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Escreve às quintas.

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