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    Contardo Calligaris

    Feliz Dia das Mulheres!

    10/03/2016 02h01

    Uma amiga me confessa que ela gostaria de assistir a "O Quarto de Jack", de Lenny Abrahamson, mas está com medo que o filme seja opressivo, triste demais. Ela sabe que Brie Larson ganhou o prêmio de melhor atriz e que o filme foi um dos finalistas do Oscar deste ano, mas ela hesita. Talvez ela esteja certa, mas pelas razões erradas.

    O filme, inspirado em fatos reais, conta a história de uma menina, Joy, que foi sequestrada em plena adolescência e levada para uma cabana, onde ela vive reclusa há sete anos.

    A cabana foi escolhida e reformada por Nick, o sequestrador, para ser uma prisão. Ela não tem janelas (só uma claraboia inacessível); as paredes são isoladas acusticamente, à prova de pedido de socorro; a porta é blindada e, de ambos os lados, a fechadura funciona com uma combinação que só Nick sabe –matando-o no meio do sono, os sequestrados morreriam lá dentro, de fome.

    Dentro da cabana de, sei lá, 12 metros quadrados, há um quarto só, com uma pia, uma cama, uma banheira, um fogão, um televisor e uma geladeira. Tudo o que é preciso, certo?

    Dois anos depois de ter sido sequestrada, Joy engravidou e teve um filho, Jack, que vive com ela e nunca saiu da cabana e do quarto.

    Joy é uma ótima mãe (até porque não é que ela tenha muita outra coisa para ser). Ela cuida de Jack com dedicação, lê com ele os livros que ela pede para Nick trazer, dá um pouco de aula, limita o tempo de televisão, força Jack a fazer exercício e faz que o filho não se sinta preso: aquele quarto é, segundo ela diz a Jack, o universo.

    À noite, Nick chega do trabalho, traz provisões e algumas coisas que Joy pode ter pedido, se queixa do custo da vida, janta e se deita com ela.

    Se não fosse pela presença noturna de Nick na cama da mãe, Jack estaria no melhor dos mundos: sua mãe é só para ele.

    Minha amiga, como disse, não está muito a fim de ver a história de Joy sequestrada e estuprada anos a fio; nem a história de Jack recluso. Entendo, mas vai ser difícil, porque a história de Joy é brutal e triste sobretudo por ser uma história estranhamente ordinária.

    Foi só dias depois de assistir ao filme que me dei conta de que "O Quarto de Jack" não é apenas um filme sobre um fato de crônica sinistro: é um filme sobre a vida comum.

    Aliás, é o filme ideal para celebrar o Dia das Mulheres. E recomendo que as mulheres levem filhos, maridos, pais, irmãos e primos.

    Sim, a cabana é exígua, tem pouca luz e zero sol, a televisão é velha, falta a margarina no café da manhã. Mas, quanto ao essencial, Joy tem a vida de um clichê: o da mulher de um subúrbio norte-americano nos anos 1960 –ou seja, na época em que o casamento e a "harmoniosa" constituição de uma família eram os sonhos impostos a qualquer mulher que quisesse ser "feliz". A ironia está explícita no nome, Joy: "Les Quinzes Joies du Mariage", as quinze joias do casamento, já na França do século 15, era um texto satírico.

    As mulheres, chamadas a trabalhar durante a Segunda Guerra, tinham descoberto que o mundo fora do "quarto de Jack" era interessante. No pós-guerra, o mundo precisava que elas voltassem "felizes" para a cozinha e a cama. Por isso o ideal casamenteiro vingou de 1950 até ao fim dos anos 1980.

    "O Quarto de Jack" (apenas "Room", quarto, no original) é um filme sobre o sequestro do desejo feminino, sobre os limites impostos ao horizonte da vida das mulheres.

    O truque é sempre o mesmo: apresentar a "divisão" do trabalho entre homens e mulheres como "natural". As mulheres (felizes, claro) ficam no "quarto de Jack", e os Nicks da vida saem pelo mundo e voltam à noite. Isso porque a mulher seria definida apenas pela sua função "real": a de procriar e garantir a reprodução social –ou seja, cama e cozinha.

    Os antropólogos do século 19 caíram nessa, explicando que era assim mesmo nas sociedades de colhedores e caçadores: os homens caçando ao longe, e as mulheres ao lado do fogo, com as crianças. Outro dia explico por que nunca foi assim.

    Enfim, a todas as mulheres, desejo uma grande semana, fora do "quarto de Jack".

    Alerta de "spoiler" (não leia se não viu o filme ainda): Jack consegue se reintegrar ao mundo sem muito dano porque ele aprende que, para Joy, ele não é e nunca foi a única razão de viver. Serve de recado para as mães.

    contardo calligaris

    Italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Escreve às quintas.

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