• Colunistas

    Tuesday, 30-Apr-2024 12:30:25 -03
    Contardo Calligaris

    Massacre nos EUA deve nos lembrar que matar é fácil e demasiado humano

    05/10/2017 02h00

    Mariza/Editoria de Arte/Folhapress

    Na noite entre domingo e segunda (2), em Las Vegas, Nevada (EUA), um atirador, instalado num quarto do 32º andar do Mandalay Bay, atirou longamente, com armas automáticas, na multidão que assistia a um festival de música country, num espaço aberto próximo ao hotel.

    Pelas contas até terça-feira, ele matou 58 pessoas e feriu mais de 500. Que eu saiba, foi o maior massacre produzido por um atirador isolado na história dos EUA.

    Aparentemente, o homem se suicidou quando a polícia de Las Vegas fez irrupção no quarto, no qual ele estava instalado havia dias, com suas armas (23, das quais 17 eram rifles) e munições (milhares).

    A premeditação era evidente, por causa das armas e da espécie de martelo que lhe permitiu quebrar as janelas antes de atirar.

    Nas reportagens, a primeira hipótese foi a do terrorismo –externo (islâmico, então) ou interno (supremacistas brancos ou inimigos do governo federal, no estilo Timothy McVeigh na bomba de Oklahoma, em 1995).

    Mas nada indicava que o atirador Stephen Paddock, 64, contador, tivesse se convertido ao islã ou militasse nas fileiras da extrema direita.

    Aparentemente, o Estado Islâmico se atribuiu a responsabilidade pelo atentado por oportunismo.

    Sem ideologia que explicasse o massacre, as reportagens vasculharam a família e a vida privada do atirador. Assistimos à consternação do irmão, que mal conseguia imaginar o que teria levado Stephen a se transformar num assassino em massa. Tivemos acesso ao Facebook de Marilou Danley, uma mulher de origem filipina que, aparentemente, morava com Paddock: eram só fotos de felicidades –de férias e margarinas.

    Enfim, descobrimos que o pai dos irmãos, Benjamin Paddock, foi um fugitivo procurado pelo FBI de 1969 (quando fugiu de prisão) a 1977. Ele era um assaltante de bancos, definido como psicopata, suicida, armado e perigoso. O pai não parecia ter tido relações diretas com os filhos, e a descoberta só levantou a suspeita, que paira no ar, de uma herança genética maldita.

    Depois da família, foi a vez da situação econômica. Paddock não era um ressentido do sonho americano: era proprietário de duas casas, dois aviões (que ele pilotava), dois carros e quase 40 armas. Gostava de jogos de azar, mas ninguém descobriu uma última aposta que teria ruinado as finanças e a vida dele.

    Até agora, tampouco apareceu algum diagnóstico médico terminal que pudesse empurrar Stephen ao desespero e à tentativa de se suicidar levando consigo todos os que ele pudesse.

    A incapacidade de descobrir a motivação do massacre é boa: ela deveria nos lembrar que matar é fácil e demasiado humano. O mistério não é que alguém se torne assassino em massa. O mistério é que a grandíssima maioria não mate ninguém.

    Mas vamos ao que nos sobrou para "explicar" o acontecido. Certo, há o eterno problema do direito de possuir armas, que é garantido pela Constituição dos EUA. Mesmo que Stephen fosse o tipo de pessoa (sem antecedentes) que um controle autorizaria a comprar qualquer arma, é bizarro que alguém possa ter mais de 40 delas e milhares de munições.

    Mas não temos condição de criticar: no Brasil, o Estatuto do Desarmamento produziu uma situação em que as armas automáticas pesadas são de propriedade exclusiva do Exército e do crime organizado (a polícia só as consegue quando as toma dos bandidos).

    Enfim, podemos acusar a cultura. A figura do atirador só que massacra dezenas, até ser morto, é tipicamente americana (talvez seja o custo do ideal do homem sozinho no Oeste, com seu rifle, contra todos).

    Da mesma forma, a figura do assaltante que mata sem que isso seja necessário para roubar é tipicamente brasileira, e poderia ser explicada por nossa história nacional.

    Ou ainda, nos últimos tempos, a figura do terrorista islâmico que atropela ou esfaqueia é tipicamente francesa e inglesa (duas mulheres foram mortas assim em Marselha, no domingo; a imprensa mundial mal notou).

    Mas o essencial é que, por razões culturais diferentes, um mesmo mal parece se espalhar, hoje, mundo afora: a degradação progressiva do espaço público. Ele está se transformando num terreno perigoso, em que entramos só por necessidade, quando não dá para evitar, correndo, curvos, entre os escombros e nos descampados, de casa em casa, como numa rua de Sarajevo em 1993.

    contardo calligaris

    Italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Escreve às quintas.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024