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    Contardo Calligaris

    Estou cansado da ideia, comum nas missas, de que precisamos ser salvos

    28/12/2017 02h00

    Mariza Dias/Editoria de Arte/Folhapress

    A igreja (católica) da Santa Cruz e de São João Batista está na rua 42, entre a Oitava e a Nona avenidas de Nova York.

    É uma paróquia de capuchinhos franciscanos bem ativos no bairro (o site da paróquia se chama, aliás, "Christinthecity", Cristo na cidade).

    É nessa igreja que fui escutar a missa da meia-noite entre o dia 24 e o dia 25.

    Na minha infância, eu nunca assistia à missa de meia-noite de Natal. No dia 24, as crianças dormiam cedo, para acordar de madrugada e descobrir os presentes. Se a gente não estivesse dormindo, os presentes nem chegariam.

    Quem trazia os presentes não era o Papai Noel, mas o próprio bebê Jesus. Meus pais sendo agnósticos, essa tradição era paradoxal, mas teologicamente certeira: afinal, para os cristãos, o verdadeiro presente de Natal é o próprio Cristo, que nasce na manhã do dia 25.

    Na Igreja da Santa Cruz, domingo à noite, a missa foi celebrada por três padres, ajudados por um organista, um coro e dois solistas, todos excelentes. No alto da igreja, como se fossem anjos, três mulheres tocavam trombetas: "Joy to the World" (alegria para o mundo), de Handel, parecia explodir de júbilo.

    A homilia do pároco foi tão tocante quanto a do papa Francisco na missa de meia-noite em Roma. De fato, é difícil não comparar as tribulações dos refugiados de hoje com as peregrinações de Maria grávida e José procurando um lugar onde o filho deles pudesse nascer.

    O Natal, para os cristãos, é uma alegria suprema e contagiosa. O tempo do advento acabou, e a espera é recompensada: aqui está o nosso Salvador e Redentor.

    Agora, num pequeno exercício de teologia natalina, no meio da missa de meia-noite, pensei: mas ele vem nos salvar de quê? De qual falha ele nos reabilita ou nos absolve? Afinal, antes de ele chegar, o que era pecado?

    Por esse caminho, cheguei ao pensamento seguinte: talvez a gente se considere perdido no pecado justamente para fundamentar a necessidade de sermos salvos e redimidos.

    De novo. Será que, pelos nossos pecados, precisamos ser salvos e portanto esperamos o Cristo que nos redimirá? Ou será que gostamos de esperar e acolher um salvador e redentor e, por isso, imaginamos estar sempre em apuros, na danação?

    Ou seja, estamos afogando? Ou somos como falsos náufragos que pedem ajuda porque gostam da festa como os marinheiros que os resgatam?

    Não sei se nossos prazeres mais desvairados são falhas, pecados ou, simplesmente, bons momentos. Mas entendo que esses prazeres precisam aparecer como falhas e pecados se curtirmos a ideia de sermos salvos e redimidos.

    Mais uma pergunta: será que existem ainda prazeres praticáveis, que não sejam envergonhados ou atormentados pela culpa e a esperança da redenção?

    Na noite do dia 25, em Manhattan, no mesmo horário da missa da véspera, era a "Christmas Night Leather and Lace" (noite de Natal couro e renda), no Pendulum, um clube que promove festas para reunir praticantes de qualquer fetiche.

    Há um bar de bebidas não alcoólicas (nada de dionisíaco), camas em quartinhos abertos ou fechados e algumas cruzes de santo André para prender, expor e quem sabe açoitar publicamente o parceiro ou a parceira.

    Nota: a cruz em forma de X é chamada cruz de santo André porque, na hora de ser supliciado, o santo disse que ele não merecia morrer na mesma cruz do Cristo e pediu uma cruz diferente. É sempre engraçado constatar que os apetrechos do erotismo sadomasoquista são facilmente derivados da tortura dos mártires cristãos.

    O Pendulum sendo um clube particular, a festa é sem censura: é permitido (e encorajado) "explore your deepest desires", explorar seus desejos mais profundos.

    Organizar essa festa no Natal (e mencioná-la aqui) talvez manifeste uma veia sacrílega proposital, como se a festa contrabalançasse o excesso de "bons sentimentos" da missa de meia-noite.

    Mas não são os bons sentimentos que me cansam. Estou cansado, sim, da ideia, compartilhada nas missas mundo afora, de que estaríamos perdidos e, portanto, precisaríamos ser salvos.

    A festa do Pendulum era um lugar de resistência da ética libertina, pela qual 1) o prazer não se identifica com a falha ou com a culpa, 2) ninguém está vindo nos salvar, mas não se desespere: de fato, não precisamos ser salvos.

    Essa notícia, se fosse ouvida, seria tão boa quanto a do Natal.

    contardo calligaris

    Italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Escreve às quintas.

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