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    Cristovão Tezza

    Na obra literária, o mundo da opinião é um objeto de observação

    21/05/2017 02h00

    Vânia Medeiros

    A última vez em que manifestei publicamente uma opinião política, há mais de um ano, perdi metade dos meus já poucos leitores; temo que, se repetir a experiência, a outra metade se vá, quando então só me restará me dedicar à marcenaria, minha vocação secreta.

    É verdade que o território da opinião política é naturalmente minado —meio passo à esquerda ou à direita e você explode na tela.

    Também não ajuda o fato de que o Brasil constituiu a si mesmo pelo horror à pluralidade, da matança dos índios à violência sindical, do renitente racismo a um dos mais altos índices de homicídio do mundo.

    Acrescente-se o gigantesco fracasso do ensino: entre nós, 50% dos jovens entre 15 e 17 anos estão fora do ensino médio, e há décadas ninguém politicamente relevante se preocupa com isso.

    Com esse índice, a civilização permanece uma miragem; e como não se sabe o que fazer a respeito, o país vai continuar piorando -não tenho nenhuma ilusão nessa área, educação é trabalho duro.

    Complete-se o quadro com a onipresença da internet, a disseminação globalizada do culto narcísico à opinião instantânea sobre qualquer coisa, e chegamos, dialeticamente (digamos assim, em homenagem à antiga esquerda), à síntese da ausência total de opinião, porque (agora a homenagem é ao multiculturalismo) todas ética e moralmente se equivalem, exceto as outras —-se é que (do lado de lá, ou de cá) podemos considerá-las "opiniões", e não expressões deformadas de pessoas que fariam melhor se não existissem. Esse é o clima.

    Nesta entropia argumentativa, agrada-me manter a separação, nítida como uma lâmina, entre a linguagem da não ficção (onde toda opinião se coloca) e da ficção, o território da literatura. Bem, para dizer as coisas como elas comezinhamente são, opinião é obra de "pessoa física", nasce e se encerra nela, um ato da vida que com ela se confunde.

    Assim, por sua própria natureza, a opinião é excludente, redutora, mesquinha, egoísta, interessada e interesseira; a opinião tem dentes, às vezes sangue; como um animal acuado em ambiente hostil, ela sabe que, se titubear, será trucidada.

    É também nela que parece conceitualmente possível a separação entre forma e conteúdo, este graal fascinante dos estudos da linguagem. A mesmíssima opinião pode ter efeitos diametralmente opostos, dependendo da forma. Sim, a retórica, como vestimenta, pode fazer o serviço sujo; a mínima entonação, às vezes, põe tudo a perder, ou a ganhar.

    Nada a fazer, e nada contra: é assim que funciona mesmo. Quando pública, opinião é coisa de profissional. Na vida privada (já em vias de desaparecimento), numa atmosfera de horror à diferença, é fonte perpétua de tensão. Na estreiteza política, qualquer opinião nos ameaça.

    Agora penso na boa ficção. Nela, o mundo da opinião é antes observado que assumido. Na obra ficcional de peso, as opiniões são objetos distanciados do olhar. O narrador afasta-se do instante presente para melhor compreendê-lo.

    A escrita ficcional cria um ambiente de sentidos onde se movem os pontos de vista, nunca abstratos, mas imersos em seu meio concreto, de onde extraem nitidez; o tempo se suspende no processo de representação de hipóteses da existência.

    De certa forma, toda obra de ficção bem realizada sabe mais do que o seu autor, ultrapassa-o, transborda os seus limites pessoais, porque sua matéria fundamental são linguagens coletivas, vozes distintas e contraditórias, palavras já povoadas pelos outros; um bom narrador, paradoxalmente, mais ouve do que fala. A permanência de obras como "Satíricon", "Decameron", "Dom Quixote", "Crime e Castigo" ou "Memórias Póstumas de Brás Cubas" ilustra essa misteriosa transcendência.

    Na literatura, não é a "verdade" que interessa, mas as pessoas que pensam sobre ela; na obra literária, o mundo da opinião é um objeto de observação, não um porrete na mão do usuário. É verdade que a ideia romântica de uma "educação pela literatura", dominante na passagem do século 18 ao 19 —e a ficção teve um papel fundamental na criação do conceito de direitos humanos que o ideário iluminista consagraria— não terá volta. De qualquer forma, a ficção permanece como uma boa reserva reflexiva em meio à gritaria.

    cristovão tezza

    É crítico literário e um dos principais ficcionistas em atividade no país. Já venceu alguns prêmios literários brasileiros com o livro 'O Filho Eterno' (Record). Escreve aos domingos, a cada 2 semanas

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