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    Cristovão Tezza

    A esquerda capturou a alma cristã milenarista a serviço de uma utopia

    04/06/2017 02h35

    O que significam ainda "esquerda" e "direita"? Desde que, na Convenção da França revolucionária, os jacobinos sentaram-se à esquerda e os girondinos à direita, muita história rolou sobre essa distinção.

    Uma definição precisa não existe mais -o que restou, talvez, a partir de extremos brutos, seja um estado de espírito genérico ligado a alguns princípios voláteis. Penso em mim mesmo, quem sabe ecoando um sentimento coletivo. Para colocar algum método nessa nuvem, vejo três campos em que se pode pensar a separação.

    O primeiro é o comportamento diante de escolhas pessoais do nosso dia a dia. Descriminalização do aborto e liberação das drogas, por exemplo. Direitos dos negros e dos índios. Casamento gay e direitos dos transgêneros. Movimento feminista e igualdade das mulheres.

    Vânia Medeiros/Folhapress

    Aparentemente, essas seriam pautas quase que exclusivas da esquerda, embora em boa parte venham de movimentos nascidos num certo viés libertário capitalista, em defesa dos direitos individuais.

    Descontando-se as muitas variáveis socio-históricas, econômicas e geográficas que se opõem ou interpenetram na guerrilha político-cultural, há um ponto em comum subjacente: o Estado deve ser laico e o princípio da responsabilidade pessoal é inalienável e intransferível.

    O segundo campo, talvez o dominante, está na relação entre Estado e economia -é o que, pela história dos últimos dois séculos, mais marcadamente vem distinguindo, aos olhos do senso comum, esquerda e direita. Nesse sentido, o que define uma coisa e outra seria a concepção de Estado.

    Uma das coisas que a ditadura militar instaurada nos golpes sucessivos de 1964 e 1968 me ensinou foi a desconfiar profundamente do Estado. Naqueles anos turbulentos, nutri diariamente um horror pela burocracia estatal, por seus carimbos, por sua violência, por seus generais, por seu controle, por sua censura, e principalmente pela sua opaca e intransponível estupidez.

    Ia nisso o anarquismo individualista romântico que estava no coração dos anos 1960 e 1970 em que eu entrei de cabeça e marcou quem quer que vivesse naquele tempo.

    Mas, para outra parte da minha geração, o efeito foi inverso, seguindo a esteira tradicional do país -o Estado seria o Xangrilá, a solução definitiva dos nossos problemas. Bastava tomá-lo nas mãos. Feito isso, o país daria um salto em direção ao paraíso. O modo mais simples de entender a questão está na guerra entre privatização e estatização.

    Por este ângulo, o ditador Geisel e a presidente Dilma estariam curiosamente do mesmo lado, pranchetas criando estatais gigantescas e maravilhosas. Do ponto de vista econômico, ambos apenas cavalgavam o mesmo irresistível tiranossauro rex com uma cenoura quebrada a balançar-se adiante.

    A grande conquista cultural da esquerda, de que decorre o seu resiliente poder político, está em vincular nos corações e nas mentes o primeiro pacote de valores -os direitos inalienáveis do indivíduo- com o segundo: precisamos de um Estado monstro para garantir a nossa liberdade. Assim, o mesmo brasileiro que defende o casamento gay, defende igualmente, no mesmo "combo político", os tentáculos estatais inarredáveis da Petrobras, do Banco do Brasil, dos Correios, mais o controle corporativo-sindical da educação brasileira em bolsões privilegiados, e assim por diante.

    E o terceiro campo seria filosófico-religioso. O espírito da esquerda foi o herdeiro direto do espírito do cristianismo em dois aspectos revolucionários.

    O primeiro é o conceito fundamental do cristianismo primitivo de que todas as pessoas são iguais perante Deus, o que, apesar da reza milenar de todos os santos, só se tornou de fato um ideário político consistente com o Iluminismo ateu e a Revolução Francesa.

    O segundo aspecto é a ideia bizarra de que o mundo e a vida se dirigem inexoravelmente, ou dialeticamente (para os hegelianos), a uma redenção futura que dará um fim à história.

    A teleologia cristã, ao criar uma narrativa única com começo, meio e fim, representou uma mudança radical na cosmologia da Antiguidade, fragmentária e circular.

    A esquerda capturou integralmente a alma cristã milenarista, pondo-a a serviço de uma utopia estatal terrestre. É delírio, mas move o mundo.

    cristovão tezza

    É crítico literário e um dos principais ficcionistas em atividade no país. Já venceu alguns prêmios literários brasileiros com o livro 'O Filho Eterno' (Record). Escreve aos domingos, a cada 2 semanas

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