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    Cristovão Tezza

    Às vezes, o que parece tramoia da CIA é apenas a voz judiciosa da província

    18/06/2017 02h00

    Quando nos anos 1990 se decretou em Curitiba a obrigatoriedade do uso do cinto de segurança, na manhã seguinte mais da metade dos motoristas já usava o apetrecho.

    Consta que a mesma lei, em Porto Alegre, provocou uma manifestação com passeata até a Câmara, protestando contra aquele arbítrio que atentava contra os direitos individuais. E, no Rio, o seu efeito imediato foi uma concentração de camelôs nas esquinas, vendendo camisetas com o cinto pintado para enganar os guardas.

    Não sei se em Porto Alegre e no Rio aconteceu realmente assim, mas a parte curitibana com certeza é verdadeira.

    Catarinense, desembarquei criança em Curitiba, em 1961, e desde cedo senti a atmosfera singular deste "Brasil diferente", como diria o crítico Wilson Martins, marcado por uma presença forte das colonizações alemã, ucraniana, polonesa e italiana.

    Editoria de Arte/Folhapress
    Ilustra Tezza de 18.jun.2017

    Naqueles anos, a cidade era uma capital tranquila e discreta, com poucas atrações além das colunas da Universidade Federal e dos pinheiros da praça em frente. De notável no espaço urbano, havia o centenário Passeio Público, então um zoológico praticamente no centro da cidade, com leões e tigres melancólicos no fundo de jaulas sombrias, um ofidiário, uma ilha de macacos, um lago de pedalinhos. Em 1911, Emiliano Perneta havia sido coroado ali Príncipe dos Poetas, numa cerimônia grega e brega.

    Enfim, uma pacata província de um Brasil antigo.

    A cidade-modelo, referência mítica de urbanismo e qualidade de vida que correu mundo, surgiu mais tarde, uma invenção dos anos 1970 saída dos projetos de Jaime Lerner, três vezes prefeito.

    O fechamento das ruas do centro com a criação de um calçadão para pedestres, os ônibus expressos em canaletas exclusivas, a ênfase em questões ambientais, a criação de parques e pontos de cultura numa cidade então praticamente vazia em espaços de lazer, tudo acompanhado de marcas visuais e conceituais (estações-tubo, ópera do arame, rua 24 horas) que pareciam criar uma cidade de redoma, foram definindo a imagem contemporânea de Curitiba. Talvez o grande fator do sucesso urbanístico de Lerner tenha sido compreender a alma do curitibano –o cidadão que usa o cinto de segurança antes por ser lei do que por ser útil.

    Toda mitologia tem sua base de verdade. De fato, a Curitiba de Lerner projetou-se por uma concepção simples e revolucionária de transporte coletivo e por alguns conceitos urbanos inovadores, mas o mito cria lendas. Curitiba é uma cidade brasileira, não um cantão suíço.

    A Grande Curitiba é uma das regiões mais violentas do país; e, como em qualquer cidade do Brasil, não convém caminhar desatento pelas ruas. O inchaço brutal promovido pela cultura nacional do automóvel praticamente anulou o potencial transformador das inovações do transporte urbano.

    E, por amor aos shoppings, destruíram-se os espaços de pluralidade social e convivência pública. Enfim, um Brasil escarrado, sem tirar nem pôr.

    Uma das lendas que todo motorista de táxi local alimenta é a fantasia de que, graças à propaganda que se fez, a cidade se encheu de assaltantes, drogados e marginais.

    Na verdade, o Brasil sofreu nas últimas décadas um dos mais rápidos, concentrados e violentos processos de urbanização do mundo (talvez só na China esse processo tenha sido mais intenso), e, é claro, Curitiba sofreu junto. Também nisso ela é brasileiríssima.

    E há a dimensão política. Lembro que, na educação lítero-existencial que vivi na Boca Maldita –a quadra central dos cafés onde se pratica o esporte da autofagia (ninguém fala mais mal de Curitiba, e com tanta volúpia, do que o próprio curitibano)–, cresci ouvindo cobras e lagartos do "prefeito da ditadura", na polarização dos anos 1970.

    Que, agora sem ditadura, prossegue chapada: a "República de Curitiba", o antro de conspiradores criado pela inesgotável verve de Lula, é apenas reflexo de um juiz de primeira instância que, no acaso da burocracia, caneta à mão, ao seguir um processinho miúdo, foi desdobrando ao pé da letra a letra da lei, talvez sem perceber no primeiro instante a dimensão do monstro que gerava.

    Às vezes, o que parece tramoia da CIA é apenas a voz judiciosa da província, com uma tabuinha de regras pendurada na parede.

    cristovão tezza

    É crítico literário e um dos principais ficcionistas em atividade no país. Já venceu alguns prêmios literários brasileiros com o livro 'O Filho Eterno' (Record). Escreve aos domingos, a cada 2 semanas

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