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    Cristovão Tezza

    Karl Valentin e as duas Alemanhas

    08/10/2017 01h00

    Vânia Medeiros/Editoria de Arte/Folhapress
    Vânia Medeiros 8.out.2017

    Em 1991 fui convidado pela Inter Nationes, uma fundação alemã, a visitar a Alemanha recém-reunificada, junto com um grupo de jornalistas e escritores brasileiros, viagem que se encerrou na Feira do Livro de Frankfurt. Entre eventos e traslados, fomos a Berlim, Dresden, Leipzig, Bonn e Munique. Para quem, como eu, lavou pratos em Frankfurt nos idos alternativos dos anos 1970, a viagem foi uma mordomia inesquecível –e instrutiva.

    Lembro do impacto quase didático que senti na travessia de uma Alemanha à outra, passando em Berlim do cenário technicolor do triunfo do capitalismo para o preto e branco precário do fracasso socialista. Mas em toda parte já se viam os andaimes e as gruas onipresentes da reconstrução.

    Uma cena foi especialmente estranha para mim. Em Dresden, saí uma manhã para passear e parei num bar, que avançava na calçada. Não havia mais ninguém. Súbito, chega uma família alemã; o pai, a mãe, crianças, tios, um avô, avançam pelas dezenas de mesas vazias e, sem pedir licença, vêm se sentar comigo, ocupando as três cadeiras restantes e completando a acomodação nas mesas ao lado. Não foi uma invasão agressiva; cumprimentaram-me cordialmente e voltaram a falar entre eles. Tateei a situação, trocando duas ou três palavras: "Brasil", eu disse, esperançoso; "Futebol! Pelé!", eles responderam, com um sorriso. Terminei a cerveja e me despedi. Mais tarde, o guia me explicou: é a Alemanha Oriental. Por que eles ocupariam mesas vazias, se ainda havia lugares sem uso na sua?

    Em Munique, por indicação expressa de um ator e velho amigo, Ariel Coelho (1951-1999), na única tarde livre desprezei uma exposição de Rembrandt (que está no mundo inteiro) e fui visitar o museu Karl Valentin (que só existe lá).

    Valentin (1882-1948) foi um comediante extraordinário, palhaço refinado, mestre do nonsense, da ambiguidade, do duplo sentido, e um crítico demolidor de tudo que é lógico, respeitável e ponderado. Sua grande arte é a da presença no palco –foi um gênio das gags e dos sketches de cabaré, e também produziu filmes. Mas, ao contrário dos grandes do cinema mudo, como Chaplin e Buster Keaton, Valentin faz principalmente um humor de texto.

    Arregimentei uma tradutora alemã –a única palavra que sei da língua é "selbstverständlich", que decorei (sem jamais conseguir pronunciá-la corretamente), porque me lembra mais um teorema que uma palavra: "aquilo-que-é-evidente-por-si-só", ou, é claro, "óbvio"– e fui ao museu.

    Logo à entrada, uma seta e uma placa na escada avisam: "Cuidado! Rato!" E vemos no chão um ratinho de borracha. Adiante, uma garrafa gigante e vazia; olhando melhor, vemos uma única gota estilizada no fundo. Rótulo: "Suor de funcionário público". No segundo andar, há um bar; em cada mesa, uma das cadeiras tem uma etiqueta vistosa advertindo: "Cadeira para não fumante". No cenário anos 1930, uma vitrola antiga roda vinis com gravações originais de Karl Valentin, em performances de cabarés –além dos chiados dos velhos discos, ouvem-se as risadas do público.

    Explorei a guia, pedindo que ela me traduzisse alguns trechos. Um deles: "O trânsito de Munique está um caos! Precisamos organizá-lo! Na segunda-feira, apenas ônibus! Na terça-feira, só carros oficiais! Na quarta-feira, as ambulâncias!" Eu ria sem parar e a minha guia estranhava: "O que há de tão engraçado?" Outro trecho: "Por que as pessoas não vão ao teatro? É evidente: porque não são obrigadas! Por que as crianças vão para a escola? Ora, porque são obrigadas! Vamos instituir a obrigatoriedade de ir ao teatro!"¦" –e segue-se um arrazoado delirante dos efeitos benéficos da lei.

    Valentin, que foi professor de Brecht, pagou o preço do esquecimento por ter ficado na Alemanha durante a era Hitler. Mas nunca perdeu o humor.

    O Ariel (que, aliás, era fisicamente parecido com Valentin) gostava de brincar com uma cena curtíssima e maravilhosa: um oficial da SS, inteiro paramentado, avança para a boca do palco em passos fortes, bate os calcanhares, estica vigorosamente o braço na saudação nazista, grita "Heil!"¦" –e, no mesmo instante, a face rígida se desfaz num misto de desespero e súplica, enquanto o braço se recolhe, a voz um fiapo: "Como é mesmo o nome dele?!".

    cristovão tezza

    É crítico literário e um dos principais ficcionistas em atividade no país. Já venceu alguns prêmios literários brasileiros com o livro 'O Filho Eterno' (Record). Escreve aos domingos, a cada 2 semanas

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