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    Cristovão Tezza

    Fantasma discreto, o tempo fica, a certa altura da vida, mais espesso

    19/11/2017 02h00

    Vânia Medeiros/Editoria de Arte/Folhapress

    Meu filho Felipe, que tem síndrome de Down, até hoje não distingue um sábado de uma segunda-feira ou uma quinta, assim como a diferença entre julho, maio ou novembro; e números como 2017, 1970 ou 1924 são apenas designações do futebol, como Brasileirão, Copa do Mundo ou o incrível nascimento do Clube Atlético Paranaense.

    Passei anos tentando lhe impingir a escrita do tempo, cercando-o de calendários, relógios, números e explicações exasperadas e exasperantes sobre as divisões do tempo até que —comigo a ficha sempre se enrosca e demora a cair— percebi enfim, anos depois, que este era um problema estritamente meu.

    Ele estava, como sempre esteve e continuará assim, perfeitamente alegre e feliz com o seu presente perpétuo. O que é uma percepção do tempo —ou, quem sabe, uma ausência de percepção do tempo— inacessível aos pobres mortais que vivem na gaiola dos dias, das horas e dos segundos.

    Súbito me ocorreu que, sem a divisão abstrata do tempo, não há igualmente escrita (ele nunca aprendeu a escrever), que é a arte de produzir e congelar passados.

    Certo: só me ocorreu pensar e escrever sobre o tempo porque a essa altura da vida o tempo começa a ficar mais espesso, por assim dizer, e quase conseguimos pegá-lo com a mão. O tempo é um fantasma discreto que só se deixa ver por seus efeitos, que são ruínas.

    Estou lendo saborosamente "Sobre o Tempo", de Norbert Elias (1897-1990), pensador de que sou leitor devoto desde que descobri sua obra mais conhecida, "O Processo Civilizador" (Editora Zahar, que publica a sua obra no Brasil): imaginava encontrar uma história da evolução da roda até a propulsão nuclear, e me vi lendo um magnífico estudo da passagem da Idade Média para a Renascença fundamentado em grande parte nos manuais de boas maneiras.

    O peso que ele dá às formas coercitivas da cultura, considerando a fronteira sempre elástica entre indivíduo e sociedade, lembra o modo de percepção literária e ficcional da realidade, objeto da prosa romanesca.

    Mas, nas suas mãos, essa percepção serve a um ângulo rigorosamente objetivo.

    Dois exemplos de seu método, ao acaso: em "A Sociedade dos Indivíduos", ele lembra como a liberação feminina e concomitante exposição pública de seu corpo exigiu uma mudança profunda da natureza do olhar e do autocontrole masculinos, e isso não foi apenas uma nota de rodapé da evolução dos costumes; e em "Os Alemães", Norbert Elias investiga a instituição aristocrática do duelo, um ritual formalizado à margem do monopólio da força pelo Estado, em que os nobres (e apenas eles) podiam matar sem consequências sérias, não como um exotismo curioso e acidental, mas como poderosa expressão de estratificação social, com ramificações significativas na vida comum.

    Em "Sobre o Tempo", ele observa o momento decisivo em que "uma cronologia centrada no mundo físico separou-se da antiga cronologia, centrada no homem". Isso coincide com a criação da ideia de um mundo físico autônomo, desvinculado da nossa vida social.

    O "humano", tudo o que circula na vida cultural e social, passou a se compartimentar, como objeto de estudo, nas chamadas ciências humanas, uma divisão que se universalizou profundamente na consciência contemporânea.

    Sabemos muito sobre o mundo físico, mas pouco sobre o universo social, diz ele.

    Troco em miúdos, para uso próprio: o que sabemos sobre a física nos permite levar um homem à Lua e trazê-lo de lá; mas o que sabemos sobre a sociedade ainda não nos garante esta exatidão em campo algum. Na área de humanas, os "símbolos conceituais estão longe de haver atingido um grau equiparável de coerência e fidedignidade".

    No mundo da realidade humana, espraiam-se a limitação e a incerteza do olhar.

    De certa forma, a ficção passou em grande parte a suprir este papel, no seu modo exclusivo de reconhecimento do mundo. Escrever ficção é produzir um tempo alternativo.

    Bem, entre ligar o computador e colocar o ponto final, já se foram, para sempre, duas horas e 45 minutos da minha vida. Felizmente, se eu tive o privilégio de trazer o leitor até aqui, para quem lê a perda de tempo fica em torno de apenas dois ou três minutos. Tanto melhor.

    Ao meu lado, Felipe pergunta: "Hoje tem jogo?"

    cristovão tezza

    É crítico literário e um dos principais ficcionistas em atividade no país. Já venceu alguns prêmios literários brasileiros com o livro 'O Filho Eterno' (Record). Escreve aos domingos, a cada 2 semanas

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