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    Cristovão Tezza

    A internet é onipresente como Deus e promete maravilhas como o Diabo

    03/12/2017 02h00

    Vânia Medeiros/Vânia Medeiros/ Editoria de Arte/Folhapress
    Vânia Medeiros 03.Dez.2017

    Há vários modos de dar algum sentido ou racionalidade ao amontoado de eventos mais ou menos desconexos que chamamos de "história".

    Há quem pense que a história é uma ciência exata, ou pelo menos determinável ou previsível; e, quando algo não dá certo, inventa-se um conjunto de explicações de modo a adaptar a realidade ao que pensamos que ela é, ou queremos que ela seja.

    É coisa demais para mim —nos limites comezinhos do dia a dia, pode-se no máximo considerar alguns fatos marcantes, a partir dos quais se desenha uma divisão de águas: no Brasil, a criação de Brasília, a renúncia de Jânio Quadros, a ditadura militar que se seguiu ao golpe de 1964 e ao sobregolpe de 1968, a passagem do Brasil rural para o Brasil urbano, a Constituição de 1988, o Plano Real e a criação de uma moeda estável, a eleição de Lula e o paraíso que se avizinhava, sob um estado contagiante de alucinação coletiva, ou ainda a primeira sentença condenatória da Lava Jato.

    Para cada um desses marcos de referência —entre dezenas de outros possíveis— há uma legião de especialistas falando com propriedade e conhecimento, dos quais me esforço para ser um leitor atento.

    Mas imagino que cada cidadão escolhe sua referência de "antes" e "depois" para consumo próprio. Tradicionalmente, o "antes" é um estado positivo ou potencialmente positivo, e o "depois", um desencadear infindável de desgraças, porque, miticamente, os grandes heróis são sempre os mortos.

    Mas o sinal também pode ser inverso: o trágico antes cede espaço a um depois redentor, quando o conceito de utopia entra no quadro mental da condição humana. Num caso ou noutro, segue-se o instinto.

    A questão é que não existe mais, no terreno da opinião, o "consumo próprio", aquela breve paz, os cinco minutos de silêncio, o contemplar búdico diante dos incríveis acontecimentos diários; não há mais, como antigamente (para ser sentimental), o franzir da testa, o prazer da boa dúvida, o balançar criterioso da cabeça, para enfim concluir: "Foi frango, sim. Dava pra pegar aquela bola".

    Hoje os fatos já vêm de fábrica embrulhados na opinião (pensei em escrever "envelopados" para lhes dar um certo pedigree, mas na verdade são embrulhos mesmo), todos pedradas diretas na testa.

    Dessa evidência corriqueira, extraio meu ponto de referência histórica do antes e do depois: a internet.

    Entre nós, a data de 2000 seria uma boa medida da virada sem volta. A internet não é de esquerda nem de direita; como Deus, está em toda parte, com a indiferença da eternidade; e, como o Diabo, nos atenta a cada minuto prometendo maravilhas, de lindas russas que namoram até carteirinhas do Exército Islâmico.

    A revolução não estava no catálogo universal de curiosidades e informações, que foi a imagem que me ocorreu quando cliquei no primeiro Netscape. Nessa perspectiva, não seria bem uma novidade.

    Nos anos 1980, comprei uma enciclopédia chamada "Tudo", em dois volumes, que era uma maravilha, um pequeno "gúgol" das cavernas que resolvia meus problemas —aliás, problemas sempre do exato tamanho dos dois volumes.

    Enquanto a internet parecia apenas substituir essa biblioteca universal, tudo parecia bem —um grande upgrade, mas de um mesmo instrumental, agora pousando impressionante na mesa do escritório. Esse neanderthal que mexia com aquilo ainda achava que o computador não passava de uma máquina de escrever sofisticada.

    A mudança estrutural, que vem transformando praticamente todos os aspectos da vida cotidiana, como uma bomba-relógio programada —do modo como caminhamos ao modo como dormimos, das relações de trabalho à qualidade do amor— foi a universalização da tal "portabilidade", para falar um palavrão contemporâneo.

    A terrível onipresença. O que significa uma perseguição monstruosa e permanente, o bafo do mundo na nossa nuca, a gritaria infernal de todos sobre tudo, a exigência de dedo erguido, o estado de indignação apoplética, os gritos da burralhada, a perpétua beira do abismo sobre o abismo.

    De tal modo que, para escapar do horror, comecei a escrever poesias (o que é meio ridículo, a essa altura, mas que fazer). Uma delas termina assim:

    "Enquanto isso, malmequer,
    aperto meus olhos míopes
    atrás de um foco qualquer."

    cristovão tezza

    É crítico literário e um dos principais ficcionistas em atividade no país. Já venceu alguns prêmios literários brasileiros com o livro 'O Filho Eterno' (Record). Escreve aos domingos, a cada 2 semanas

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