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    Daniel Pellizzari

    Redimindo o extraterrestre

    19/09/2013 12h53

    "E.T.", lançado no Natal de 1982 para o Atari 2600, é um dos piores games de todos os tempos. Nada faz sentido. O personagem-título vive caindo em buracos e passa o jogo inteiro fugindo. Investir tanto dinheiro na promoção de algo tão ruim só poderia mesmo ter acabado em ruína.

    O fracasso de vendas foi tão descomunal que feriu a Atari de morte e o encalhe de milhões de cartuchos acabou enterrado no deserto do Novo México. Esse episódio se tornou emblemático do Grande Crash de 1983, que quase extinguir o mercado de consoles.

    Tudo balela. Má fé, diz-que-diz, fofoca, mexerico, boato. Ok, a parte dos cartuchos enterrados é verdade, mas também é verdade que "E.T." é um jogo excelente. Não pedirei desculpas por essa afirmação e vou me explicar.

    Mas antes, um pouco de história: a obra de Spielberg tinha sido o blockbuster do ano. Howard Scott Warshaw, também autor do ótimo "Yars' Revenge", recebeu da Atari a tarefa de criar um jogo baseado no filme.

    Mesmo com um prazo absurdo de apenas cinco semanas e meia, o resultado foi uma das joias mais incompreendidas da segunda geração de consoles. O jogador controlava E.T. com a tarefa de recolher as três peças do telefone que permitiria seu resgate.

    Não vou negar que, para um jogo de 2600, "E.T." é complexo, mas isso jamais foi sinônimo de falta de qualidade. O segredo para entrar no jogo sem problemas era tão simples quanto ignorado por muitos: ler o manual.

    Os pretensos defeitos são bons achados de mecânica a serviço da caracterização de personagem: despencar toda hora em buracos ajuda a reproduzir a sensação de vulnerabilidade do protagonista, que está num planeta estranho, do qual não conhece o terreno. E.T. passa boa parte do filme confuso e com medo, e no jogo também é assim.

    Ele não pode atacar ninguém, mas isso é compreensível. Ora, não se trata de um soldado intergalático, mas de um botânico. Talvez o público de 1982 não estivesse pronto para algo tão avesso às fantasias de poder que até hoje dominam o cenário dos games comerciais, mas em termos de game design é uma vitória.

    Os gráficos também se destacavam: quase não se vê o "flickering" típico dos jogos do Atari, E.T. é perfeitamente reconhecível e o agente do FBI tem até cabelo debaixo do chapéu. Coroando a obra-prima, o jogo não apenas tinha uma tela de abertura, coisa raríssima naquela época, como ainda presenteava com uma "cutscene" quem conseguia mandar E.T. de volta para casa.

    E cada partida era diferente, pois a localização das peças e do local de pouso eram aleatórias. Na tela de abertura, se ouvia a música-tema do filme. Sofisticação em jogabilidade e apresentação: o que mais alguém poderia exigir?

    Mas os infiéis seguiram blasfemando, e eu continuei sem entender qual era o problema. Só comecei a me sentir menos sozinho na minha admiração décadas mais tarde, quando pipocaram na internet um punhado de sites de outros devotos de "E.T.".

    Neste ano foi anunciada a produção de um documentário no qual uma equipe tentará encontrar e desenterrar os cartuchos entregues ao deserto. Espero que, ao falar do jogo em si, reconheçam e divulguem enfim A Verdade.

    E falando em verdades, uma última antes do ponto final: o maior culpado do Crash de 1983 não foi "E.T.", mas aquela versão capenga de "Pac-Man".

    Daniel Pellizzari

    Escreveu até outubro de 2014

    Escritor e tradutor literário.

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