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    Daniel Pellizzari

    Matriarca aos crocodilos

    20/01/2014 03h30

    Jamais sairia recomendando "7 Grand Steps" por aí. Mesmo assim, todas as vezes que comecei a jogar levei horas para me livrar dele. Em contraste com o "grinding" de um JRPG tradicional, em que ações repetitivas geram um bem-estar quase hipnótico, aqui as mecânicas inspiram apenas uma ansiedade indistinta. Uma sensação de "o que diabos estou fazendo?", acompanhada pela impossibilidade de parar.

    Ambientado nos primórdios da civilização, com elementos que lembram o Crescente Fértil e o Antigo Egito, o jogo é uma mistura de estratégia e simulação com "puzzle" e gerenciamento de recursos, mecânicas de jogos de tabuleiro e estética de máquinas de salão do início do século XX.

    É uma saga familiar que se confunde com a história humana: o objetivo é criar uma linhagem que sobreviva ao tempo. Educar filhos, aprender habilidades, ascender socialmente, superar rivais, tudo se faz a partir de fichas.

    É enganosamente simples. A cada geração que escapa de ser devorada pelos crocodilos sempre à espreita, uma história gradualmente mais complexa vai se construindo. Relações entre irmãos ganham importância, avós deixam saudade, ambições começam a escapar do controle. Ao mesmo tempo, o jogo começa a parecer desonesto, vulnerável demais ao acaso. Mas começamos a aceitar a ausência de justiça, conformados com mais esse elemento de realismo. E jogamos só mais um turno.

    Tenho 241 outros jogos no Steam. Mesmo assim, sempre voltava a "7GS". Sem entender o porquê. Quando minha compulsão era, por exemplo, "Crusader Kings II", o impulso era fácil de entender. "CK2" é uma experiência muito rica, uma obra-prima de narrativa emergente feita sob medida para fanáticos por história. Mas "7GS" é quase oposto: ao invés do prazer de infinitas possibilidades, rotina. Trabalho. Cansaço. E, no máximo, um muito vago senso de realização.

    Quando chegamos à última (digamos) fase, a família ascende enfim à classe dominante e a mecânica ganha uma bem-vinda nova camada: além de escrever a crônica da família é preciso gerenciar o reino. É uma implementação de "Hamurabi", o primeiro game de estratégia, criado em 1968, mas figurinha carimbada nos micros dos anos 1980. É quase um recado dos desenvolvedores: tudo aqui é o primeiro passo. O início da civilização, o começo dos arcades, o princípio dos jogos de estratégia.

    E este "7GS" é também apenas o primeiro passo, com o subtítulo "Step 1: what ancients begat". É difícil até imaginar no que consistirão os próximos seis passos. Além da progressão de tempo na ambientação, a estética também vai mudar? E as mecânicas? Nem faço ideia. Mas estarei lá, jogando, para descobrir.

    Acabei entendendo o que me fazia voltar ao jogo ao observar meu filho de seis anos. Chegava perto enquanto eu jogava e ficava ali, olhando. "Esses são os pais?", apontava. "Posso colocar uma fichinha?". "Cuidado com os crocodilos!". E então percebi como o jogo apela como poucos ao nosso instinto de sobrevivência. Tudo lembra a sensação cotidiana de estar vivo. E contra isso é difícil resistir. Só mais um turno. Só mais um dia.

    Daniel Pellizzari

    Escreveu até outubro de 2014

    Escritor e tradutor literário.

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