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    Demétrio Magnoli

    'Nós temos que fazer distinções'

    03/05/2014 02h00

    3 de MAIO de 1994 é um dia da infâmia. Exatos 20 anos atrás, Bill Clinton assinou a PDD-25, uma ordem executiva que limitava o envolvimento dos EUA em missões de paz da ONU: forças americanas só seriam engajadas em operações associadas a um "interesse nacional vital". "Temos que fazer distinções", explicou à imprensa o assessor presidencial Anthony Lake. Enquanto ele falava, as matanças em Ruanda atingiam o apogeu, desenhando os contornos de um genocídio comparável ao promovido por Pol Pot no Camboja, duas décadas antes. A diferença crucial é que, no país africano, as potências podiam evitar a catástrofe, se não tivessem escolhido olhar para outro lado.

    Não faltam histórias de heroísmo verdadeiro durante os cem dias do genocídio ruandês. Os feitos do hutu Paul Rusesabagina, gerente do Hotel das Mil Colinas, que protegeu mais de um milhar de tutsis, estão imortalizados no filme "Hotel Ruanda". Os atos de incomensurável bravura do capitão senegalês Mbaye Diagne, oficial da missão da ONU em Ruanda, que salvou cerca de 800 pessoas, começaram a ser reconhecidos pela narrativa do jornalista Mark Doyle, da BBC. É sobre o pano de fundo deles que ganha relevo a infâmia das potências. Anos depois de assinar a PDD-25, Clinton admitiu que uma força de intervenção de 5.000 soldados seria suficiente para interromper o genocídio.

    No 7 de abril, primeiras horas da tragédia, a falange hutu capturou, torturou e matou dez soldados belgas a serviço da ONU que protegiam a moderada primeira-ministra Agathe Uwiliniyimana, também assassinada. Uma semana depois, a Bélgica retirou-se da missão das Nações Unidas. Mas a vereda da infâmia já estava pavimentada desde a noite de 9 abril, quando tropas francesas e belgas aterrissaram com o objetivo exclusivo de retirar seus nacionais do país. Os comboios destinados ao aeroporto não ofereceram lugares nem mesmo para os funcionários ruandeses das embaixadas ocidentais. "Para um homem que era soldado da ONU, a evacuação de europeus por soldados europeus representou um escândalo absoluto", escreveu Doyle num texto em memória de Diagne. "Distinções", segundo Lake.

    No 21 de abril, quando a Cruz Vermelha estimava o número de mortos em centenas de milhares, o Conselho de Segurança (CS) votou, unanimemente, pela redução do contingente da ONU de 2,5 mil para 270 soldados. No 28, a porta-voz do Departamento de Estado americano questionou a aplicação do termo "genocídio" para os massacres em Ruanda, embora ele estivesse grafado num relatório confidencial do mesmo ministério. No 30, o CS aprovou uma resolução condenando os massacres que, omitindo a palavra sinistra, circundava a obrigação legal de agir. No 5 de maio, perante o Congresso americano, a embaixadora nas Nações Unidas, Madeleine Albright, disse que "o CS perdeu o barco" em Ruanda.

    A França, porém, estava "no barco" desde o início. Os militares franceses colaboravam há anos com o governo hutu em operações de contra-insurgência designadas para quebrar a espinha da FPR, a guerrilha tutsi baseada em Uganda. Na equação da geopolítica francesa, a FPR constituía a ponta-de-lança da "África anglófona" e uma ameaça à esfera de influência neocolonial francófona. No 18 de junho, enquanto a guerrilha avançava em Ruanda, a França anunciou a Operação Turquesa. Cerca de 3.000 soldados irromperam no sudoeste do país, sob um mandato humanitário concedido pela ONU, criando "zonas seguras".

    "Seguras" para quem? A Operação Turquesa evitou alguns massacres locais, mas o genocídio já fora interrompido pela ofensiva da FPR. Altos oficiais do derrotado exército ruandês e milhares de milicianos hutus escaparam para as "zonas seguras", antes de cruzar a fronteira congolesa. Naquelas horas, semeou-se a guerra crônica que devasta até hoje o leste da República Democrática do Congo. "Distinções"...

    demétrio magnoli

    Doutor em geografia humana, é especialista em política internacional. Escreveu, entre outros, 'Gota de Sangue - História do Pensamento Racial' e 'O Leviatã Desafiado'. Escreve aos sábados.

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