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    Demétrio Magnoli

    O minuto proibido

    03/01/2015 02h00

    "Tania Bruguera, sentada em um banco da delegacia de polícia da rua Acosta, parecia estar realizando a melhor performance de sua carreira artística", escreveu Reinaldo Escobar, editor da publicação digital 14ymedio, único diário independente produzido em Cuba. No penúltimo dia do ano, as detenções da artista e de inúmeros ativistas que acorreram à Praça da Revolução para assistir "O sussurro de Tatlin" revelaram o traçado exato da fronteira da liberdade de expressão na Ilha. As vozes estritamente proibidas são as das pessoas comuns –os "cubanos a pé", como se diz por lá.

    Bruguera não se ajusta à caricatura castrista dos anticastristas de Miami. Formada em Cuba e pós-graduada nos EUA, ela fundou o programa Arte do Comportamento do Instituto Superior de Arte de Havana e lecionou em universidades de Chicago e Veneza. Em 2011, deflagrou em Nova York uma campanha artística contínua pelo respeito aos direitos dos imigrantes. Antes, em março de 2009, provocou controvérsia durante uma performance no Centro Wifredo Lam, em Havana, ao convidar os espectadores a usar o microfone para dizer o que quisessem durante um minuto. O governo cubano qualificou a apresentação como um ato "anticultural" de "vergonhoso oportunismo".

    Era essa performance que Bruguera pretendia reeditar no dia 30. Diante do veto policial ao uso da Praça da Revolução, ela tentou negociar a liberação das escadarias do Museu de Belas Artes, antes de ser detida em seu apartamento, conduzida à delegacia e vestida em uniforme de presidiária. "Neguei-me a falar com eles e a comer", explicou a artista logo após a liberação, à qual se seguiria uma segunda detenção na qual ficou sabendo que enfrenta processo por "causar distúrbios públicos" e está proibida de deixar Cuba. No fim, como constatou Yoani Sánchez, "o ato artístico se realizou", pois Bruguera "desvelou a trama de censura, covardia cultural e repressão que imobiliza a vida cubana".

    A ditadura castrista crisma os dissidentes com o epíteto ofensivo de "gusanos" (vermes). Hoje, contudo, a expressão dos dissidentes internos não é vetada, mas controlada. Pelas brechas abertas no edifício totalitário, as vozes de Bruguera, de Yoani e de tantas outras figuras podem ser ouvidas, ao menos por uma minoria da população. A crise propicia algo que, sob abomináveis cláusulas restritivas e muitas aspas, poderia ser batizado como um "diálogo nacional". Mas a inclemente repressão à performance na praça onde estão os monumentos a José Martí e Che Guevara evidencia o limite do "diálogo": o microfone não pode ser aberto, nem por um minuto, para a expressão de indivíduos sem credenciais.

    "Apenas a turba e a elite são atraídas pelo próprio ímpeto do totalitarismo. As massas têm que ser conquistadas pela propaganda." A célebre sentença de Hannah Arendt, reproduzida no site de Bruguera, esclarece o sentido profundo da repressão à performance. A propaganda castrista perde seu norte na hora do reatamento com os EUA e da abertura econômica na Ilha. Antes, sob o mito da fortaleza sitiada, a palavra crítica era identificada à traição à pátria. Como fazê-lo agora, quando o cerco se levanta? Antes, sob o signo do socialismo estatista, a ditadura era justificada em nome de uma utopia histórica. Como fazê-lo agora, quando se queima a utopia na pira do investimento estrangeiro e do empreendimento privado?

    Um minuto é tempo demais. Um ativista consegue usá-lo para reivindicar liberdades políticas –mas um indivíduo comum também pode denunciar a ausência de direitos trabalhistas e exigir a liberdade sindical. Se confrontado com um microfone aberto, o castrismo seria forçado a admitir que o socialismo reduziu-se a um cínico pseudônimo do poder absoluto do partido único. No lugar disso, ele está dizendo que os verdadeiros "gusanos" são os "cubanos a pé".

    demétrio magnoli

    Doutor em geografia humana, é especialista em política internacional. Escreveu, entre outros, 'Gota de Sangue - História do Pensamento Racial' e 'O Leviatã Desafiado'. Escreve aos sábados.

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