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    Demétrio Magnoli

    Um Jabotinsky no bolso

    21/11/2015 02h00

    João Pereira Coutinho, um articulista sofisticado, poderia poupar-se da técnica polêmica vulgar de responder a um interlocutor inventado. Mas foi isso que fez na réplica à minha crítica (Folha, 17.nov). Não desprezei seus registros do rejeicionismo árabe-palestino. Observei que ele oculta o impulso expansionista do sionismo, insistindo numa narrativa unilateral do conflito. Escrevi que "a propaganda eficaz é uma espécie singular de mentira, que se ergue com os tijolos da verdade" (Folha, 14.nov). Nesse sentido, o texto dele é tão eficaz quanto o de Caetano Veloso.

    Segundo Coutinho, posiciono-me "salomonicamente", "em cima do muro". Ele exige que eu escolha entre a narrativa de Netanyahu (isto é, a do Grande Israel) e a dos militantes do BDS (isto é, a dos arautos da eliminação de Israel). Essa é uma falsa opção: não tenho que rezar pela cartilha de Ayn Rand para recusar a de Lênin –ou vice-versa. Meu "muro" separa os defensores de uma paz em dois Estados dos porta-vozes de um Estado único em Israel/Palestina. Estou no primeiro campo, que ainda existe, tanto entre israelenses quanto entre palestinos. Coutinho e Caetano estão no segundo, que é o campo da guerra permanente.

    Não desprezo o peso histórico da recusa árabe ao Plano de Partilha e dos "Três Nãos" de Nasser, muito menos a influência tóxica do Hamas. Coutinho, por outro lado, banaliza a despossessão palestina, real e simbólica, sobre a qual se construiu Israel. Por isso, imerso na lógica propagandística, finge desconhecer os significados políticos de uma cartografia estatal conduzida logo após a diáspora palestina de 1948-49.

    O mapa encomendado por Ben-Gurion não batizou a topografia da região "com nomes hebraicos", mas com nomes bíblicos e talmúdicos. Era o início do empreendimento de erradicação de uma sociedade. Junto à memória, impressa nos nomes, desapareceram as vilas, as casas, os pomares e os títulos de propriedade dos palestinos. Sugiro aos que não se nutrem de guerras ideológicas a leitura de Sacred Landscape, obra notável de pesquisa documental sobre o assunto escrita por Meron Benvenisti, antigo vice-prefeito de Jerusalém, um sionista que, "em cima do muro", defende a solução de dois Estados.

    Israel não tem "interlocutores válidos para uma negociação", alega Coutinho, repetindo a cantilena elegida como álibi por Sharon e Netanyahu antes mesmo da cisão palestina entre os governos da Autoridade Palestina (AP) e do Hamas. A Grã-Bretanha pacificou a Irlanda do Norte negociando com o IRA. O governo da Colômbia prepara-se para firmar a paz com as Farc. Por que, então, Israel não pode negociar com os palestinos? Abbas, o presidente da AP, negou-se a apoiar o BDS explicando que "somos vizinhos de Israel, reconhecemos Israel, não pedimos a ninguém para boicotar produtos de Israel". Não seria ele um "interlocutor válido"?

    Por algum motivo misterioso, Coutinho julga que não reconheço as diferenças no interior do sionismo. Ele, sim, arguto, as enxerga –e para prová-lo menciona, com cenho carregado, o "militarismo de Jabotinsky". O judeu ucraniano Zeev Jabotinsky (1880-1940), fundador do Irgun, grupo paramilitar que operava no Mandato Britânico da Palestina, costuma ser associado ao extremismo sionista. Coutinho carrega-o no bolso, como um amuleto que teria o poder mágico de, por contraste, conferir aparência moderada ao atual governo de Israel.

    De que adianta tomar distância de Jabotinsky sem ver o Jabotinsky que existe em Netanyahu? No Irgun, está a raiz histórica do Likud, o partido de Netanyahu. Jabotinsky queria um Estado judeu em toda a Palestina, assim como quer Netanyahu. A diferença é que o primeiro imaginava uma minoria árabe com direitos iguais aos judeus, enquanto o segundo almeja perenizar um Grande Israel no qual a maioria árabe é privada de cidadania.

    demétrio magnoli

    Doutor em geografia humana, é especialista em política internacional. Escreveu, entre outros, 'Gota de Sangue - História do Pensamento Racial' e 'O Leviatã Desafiado'. Escreve aos sábados.

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