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    Demétrio Magnoli

    Estilhaços do sonho americano

    13/02/2016 02h00

    Andrew Jackson, sétimo presidente dos EUA, elegeu-se em 1828, numa quase aclamação, com 70% dos votos no colégio eleitoral, denunciando os "privilégios especiais" da elite financeira. O campeão do "homem comum", primeiro populista na história americana, introduziu o tema do confronto entre Main Street, a rua do comércio, e Wall Street, a rua dos bancos. A pulsão populista refletia injustiças verdadeiras, que derivavam da modernização econômica e social. Essa pulsão perenizou-se na vida política americana, reconfigurando-se incontáveis vezes, adaptando-se a uma paisagem em permanente mutação. Nela, encontram-se as raízes do duplo triunfo dos outsiders nas primárias de New Hampshire: Donald Trump e Bernie Sanders são mais que curiosidades de um inverno amargo, tingido pelo medo e pela raiva.

    "É a economia, estúpido!", alertava a direção da campanha de Bill Clinton, em 1992, num cartaz dirigido a seus apoiadores. Após a recessão de 2001, em cinco anos, a renda familiar média real dos americanos recuperou-se, quase retornando ao patamar anterior. Contudo, nos cinco anos de recuperação transcorridos desde a depressão de 2008-2009, a linha da renda familiar dissociou-se da linha do PIB. A economia cresce, mas os salários permanecem estagnados e a renda média oscila em níveis cerca de 7% abaixo dos registrados em 2000. Despedaça-se a expectativa, tão americana, de uma vida cada vez melhor por meio do trabalho árduo. Um pela direita, outro pela esquerda, os dois populistas marcham sobre os estilhaços do "sonho americano".

    São dois intrusos nos seus partidos. Trump, um ex-simpatizante do Partido Democrata, tece os fios do ultranacionalismo e do nativismo numa campanha movida pela intolerância e pelo extremismo. Ele promete deportar 11 milhões de imigrantes indocumentados, o que equivaleria à declaração de uma guerra interna. Sanders, um senador independente recém-chegado no Partido Democrata que se declara um "socialista democrático", ambiciona, pelo contrário, avançar por territórios exclusivos do clã dos Clinton, acrescentando votos dos latinos e negros aos de seus entusiasmados eleitores jovens. Um abismo político separa os dois populistas –que, entretanto, compartilham um pátio ideológico.

    "Nada temos, exceto problemas. Nossos líderes são moralmente corruptos. Estão vendendo o país na bacia das almas. O sonho americano morreu." As frases são de um discurso de campanha de Trump, mas poderiam ser assinadas por Sanders. Na tradição inaugurada por Jackson, ambos convocam uma insurgência contra a elite política corrompida, que teria capitulado à férrea vontade de Wall Street. Um e outro clamam por um Estado que proteja o "homem comum", restabelecendo a segurança e a prosperidade perdidas. Sanders comprometeu-se com um sistema estatal de saúde. Trump quer algo paralelo, mas sem o "socialismo": um sistema universal financiado pelo Estado de seguros privados de saúde. O magnata de extrema-direita desafia o ultraliberalismo republicano em tudo, menos na redução dos impostos para as corporações empresariais.

    O ultranacionalista e o "socialista democrático" convergem, ainda, na denúncia do livre comércio, que roubaria os empregos dos americanos. A culpa é do sistema liberal, segundo Sanders, ou dos estrangeiros, segundo Trump. A solução, segundo ambos, é o protecionismo, pela renúncia aos megacordos de comércio com a Europa e a Ásia e pela imposição de barreiras alfandegárias às importações da China ou do México.

    Numa outra era, Jackson ergueu-se contra a "elite federalista do leste", sombra dos interesses das altas finanças. Seus epígonos atuais reativam, com sucesso, um discurso antigo, fácil, cujo apelo popular repousa sobre uma angústia fundamentada. Eles provavelmente não triunfarão, mas servem como birutas, sinalizando a direção dos ventos.

    demétrio magnoli

    Doutor em geografia humana, é especialista em política internacional. Escreveu, entre outros, 'Gota de Sangue - História do Pensamento Racial' e 'O Leviatã Desafiado'. Escreve aos sábados.

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