"Em nome da gente de bem da minha querida Passa Quatro, da memória de meu pai, da esposa que eu amo, para quem mando um beijo, e dos meus dois filhos adorados, eu voto sim!". Meus amigos discutem história, arquitetura, música, literatura, cinema e até o Big Bang. Eles ficaram deprimidos com o espetáculo do 17 de abril, na Câmara. Também achei mais constrangedor que pitoresco. Contudo, devo dizer a eles que estão errados: o domingo da farofa evidenciou, essencialmente, as virtudes de nossa democracia.
Fala-se nas "traições", nos encontros furtivos no lupanar do Royal Tulip e nas procissões ao Jaburu. Há, sem dúvida, tudo isso. Mas a evolução dos "placares do impeachment" publicados nos jornais revela escassas mudanças bruscas nas posições dos deputados. Nas duas semanas anteriores à deliberação, entre 513, apenas 11 moveram-se do "não" para o "sim" e dois fizeram o inverso. Mesmo se traição for o nome certo para isso, a taxa ficou em torno de 2,5%. Por outro lado, registraram-se algo como 132 ou 133 casos (26%) de "indecisos" que se decidiram pelo "sim" ou pelo "não". Sugiro tomar as declarações de voto como um indício razoável das motivações que conduziram à deliberação.
Haverá deputados "comprados", mas os dois contendores tinham balas equivalentes nas suas agulhas. Temer contou com a expectativa realista de poder; Lula, com edições do "Diário Oficial" que usou além da fronteira do abuso. A família, os netinhos, a "República de Curitiba", os médicos, os agricultores, os ferroviários, os maçons, os fiéis dessa ou daquela igreja e essa gente da amável cidade "que me trouxe até aqui" são um animal diferente: o mundo lá fora, com suas ansiedades, expectativas e, sobretudo, votos. Na farofa do domingão, funcionavam os motores da democracia representativa.
A Ágora grega era a praça do mercado e do debate público. Nela, trocavam-se mercadorias e ideias. No fundo, a democracia é um intercâmbio entre representados e representantes. Paga-se, na moeda do voto, por um serviço político prestado. Os deputados farofeiros que berravam ao microfone queriam ser escutados por seus eleitores. Estavam dizendo, num idioma precário, que sua bússola não era Lula nem Temer, e nem mesmo seu partido ou sua consciência, mas o desejo de quem "me trouxe até aqui". O impeachment triunfou nacionalmente com 71,5% dos votos, mas empatou no Acre e perdeu no Amapá, no Ceará e na Bahia. Faz sentido.
Uma minoria de deputados, dos dois lados, mas especialmente na trincheira governista, preferiu a picanha ao franguinho frito, envolvendo o voto num celofane "ideológico". Surgiram "nãos" em nome do Bolsa Família, dos quilombolas ou da infinita bondade de Lula, bem como "sins" derivados da liberdade ou dos "valores cristãos". Valem tanto quanto os outros, claro. Entretanto, a democracia é o governo da plebe, não dos iluminados. Nela, não seria mais legítima a obediência ao eleitor, cuja referência é a circunstância, que a lealdade perene a um Partido ou uma Ideia?
Como miasmas do núcleo "ideológico", surgiram as declarações de voto de Glauber Braga (PSOL) e Jair Bolsonaro (PSC), inteiramente consagradas ao passado. O primeiro invocou Carlos Marighella, um profeta da morte; o segundo, o covarde torturador Brilhante Ustra. No mundo inteiro, há deputados assim: representam as franjas extremas das sociedades abertas, povoadas por zumbis.
A denúncia do impeachment nasce de um fundamento jurídico. O processo, contudo, é político –só por isso, aliás, corre no Congresso, não nos tribunais. Nosso Congresso, ao contrário do que assevera o senso comum, não "reflete a nação", mas um sistema político e eleitoral torto. Mesmo assim, para o bem ou o mal, ele escuta a algazarra externa. A farofa "é um pouquinho de Brasil, iá iá". A alternativa chama-se Ustra ou Marighella: ditadura.
Doutor em geografia humana, é especialista em política internacional. Escreveu, entre outros, 'Gota de Sangue - História do Pensamento Racial' e 'O Leviatã Desafiado'. Escreve aos sábados.