• Colunistas

    Monday, 06-May-2024 14:32:50 -03
    Demétrio Magnoli

    Trump introduziu uma gramática política inédita nos EUA

    22/10/2016 02h00

    Jonathan Ernst/Reuters
    Donald Trump, candidato republicano à Presidência dos EUA, em comício de campanha em Fletcher, na Carolina do Norte, nesta sexta-feira
    Donald Trump, candidato à Presidência dos EUA, em comício em Fletcher, na Carolina do Norte

    "Esqueça a imprensa: leia a internet", exortou Donald Trump, insistindo na lenda de que as eleições americanas estão sendo "fraudadas", tanto "nos locais de votação" quanto pela "mídia desonesta". As invectivas contra a "mídia" –aliás, comuns em certas áreas políticas no Brasil– refletem o estágio do desespero. Já o discurso sobre a "fraude" completa um perigoso deslocamento político. Tradicionalmente, as eleições nos EUA são disputadas em torno do binômio esquerda/direita, que se traduz na linguagem política americana como liberais/conservadores. Trump, porém, introduziu uma alternativa diferente, que funciona como uma espada erguida contra o sistema democrático: insider versus outsider.

    "Pare de choramingar", aconselhou Obama, de forma calculada, a fim de minimizar o significado do desafio à ordem política. Trump está simplesmente sendo Trump, um personagem da TV, amenizam inúmeros analistas. Mas o fato é que 41% dos eleitores, parcela similar à dos dispostos a sufragar o nome do outsider, acreditam no mito do "sistema fraudado". No discurso da derrota, em 2008, John McCain congratulou Obama "por ter sido eleito o próximo presidente do país que ambos amamos" e desejou "boa jornada" àquele "que foi meu antigo oponente e será meu presidente". Quais serão as palavras de Trump no 9 de novembro?

    Trump botou um ovo. No lugar do programa republicano clássico, de economia aberta, baixos impostos e governo limitado, delineou uma plataforma nacionalista borrifada de nativismo e populismo. A economia dos EUA padece sob a invasão de importações da China e do México. A nação americana sofre o assédio de mexicanos "estupradores" e muçulmanos "terroristas". Uma aguda xenofobia, o isolacionismo externo e o protecionismo comercial são suas receitas nucleares. Na sistemática adulação de Vladimir Putin, o outsider evidencia sua inclinação por um governo autoritário.

    É uma gramática política inédita na história americana. Nem mesmo Barry Goldwater, o candidato republicano segregacionista de 1964, um outro outsider renegado pelos moderados do seu partido, chegou tão perto de um programa neofascista. Trump será batido, talvez fragorosamente. Contudo, seu ovo ideológico atravessará praticamente ileso o teste das urnas: o outsider não será derrotado pelas ideias que defende, mas por sua personalidade.

    "Os republicanos não têm um candidato presidencial com caráter na disputa, este ano. Temos Donald Trump. E rejeitá-lo tornou-se um teste de nosso caráter". A conclusão, de Mark Salter, antigo assessor de McCain, sintetiza a opinião de parcela considerável do Partido Republicano, condensada após a divulgação do vídeo que registra a sórdida atitude do magnata diante das mulheres.

    John Podhoretz, editor da "Commentary", revista de referência do movimento conservador, definiu Trump como um "sociopata misógino". Marybeth Glenn, uma ativista republicana, descreveu-o como um "cavalo de Troia nacionalista e predador sexual". No lado oposto da fronteira partidária, Michelle Obama deu o tom da melodia: "Não é mais sobre política, é sobre decência humana básica". Depois do vídeo e das denúncias de ataques sexuais singulares, a margem favorável a Hillary Clinton nas intenções de voto entre as mulheres alcançou 15 pontos percentuais e registrou-se uma debandada entre os eleitores republicanos com educação superior.

    Hillary, uma candidata que enfrenta taxas de rejeição constrangedoras, mas inferiores à da visceral aversão gerada por Trump, girou sua campanha para o tema da "decência humana básica". O muro da xenofobia, a histeria anti-islâmica, o sombrio isolacionismo nacionalista saíram da linha de fogo. "Não é mais sobre política": o outsider perderá pelo que é, não pelo que diz. Seu ovo permanecerá na paisagem política americana e, no futuro, será chocado por outros.

    demétrio magnoli

    Doutor em geografia humana, é especialista em política internacional. Escreveu, entre outros, 'Gota de Sangue - História do Pensamento Racial' e 'O Leviatã Desafiado'. Escreve aos sábados.

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024