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    Denise Fraga

    Amor, ordem e progresso

    19/02/2013 03h30

    Tenho uma vontade danada de pôr a mão no peito quando eu canto o hino nacional. Não ponho. Fico constrangida. Nosso material cívico foi um tanto manchado pelo ufanismo do governo militar, e demonstrações de amor à pátria usando o hino e a bandeira ainda têm certo peso para mim. Sou legítima filha do golpe.

    Nasci em 1964 e, apesar da letra difícil, aprendi nosso hino inteirinho e em detalhes. Na minha escola, ele era cantado todos os dias. O castigo que minha professora dava para a bagunça da turma era o pedido de cópias da letra em folhas pautadas de papel almaço. Quem errasse uma vírgula tinha de refazer.

    Foi por conta disso que Tia Eda e minha mãe, também professora, tiveram longa querela, me fazendo carregar livros pra cá e pra lá, a respeito da existência ou não de crase no "as margens plácidas". Negativo. As margens do Ipiranga saíram de sua placidez e ouviram mesmo o brado retumbante.

    Mas, apesar dos militares e do trauma causado pelas centenas de cópias da Tia Eda, eu sempre adorei cantar o hino. Hino une. É a canção que todo mundo sabe, é quase uma reza. Eu me arrepio quando tenho a oportunidade de cantá-lo em coro. Se sua poesia não fosse tão truncada e pudéssemos todos entender que nossa vida tem mais amores nesta mãe gentil que é o Brasil, seria ainda mais emocionante.

    Por falar em amor, recentemente eu descobri de onde vem o nosso "ordem e progresso", que eu sempre associara ao meu vizinho que saía fardado todas as manhãs, mas que nada tem a ver com os militares.

    Para quem não sabe, as palavras de nossa bandeira vêm da frase positivista do filósofo francês Augusto Comte [1798-1857]: "O amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim". Simplesmente tiraram o amor. Apenas o amor!

    A frase original faz total sentido pra mim. Você ama uma coisa, se organiza e ela progride. Mas acharam que o amor não fazia falta. Ou que já estava implícito. Vai ver foi até por falta de espaço.

    Fico imaginando a reunião dos barbudos: "Não cabe tudo, vamos tirar a 'ordem'". "Não, sem ordem não se chega a lugar algum." "'Progresso' não dá pra tirar, é mau agouro..." "Tira o 'amor'. Amor todo mundo tem."

    Amor todo mundo tem?? Era apenas uma palavra, mas, mesmo que não se importassem em garantir o amor, não custava nada deixá-lo na bandeira para, no mínimo, nos ajudar a lembrar que ela é o tal do lábaro estrelado, o símbolo de amor eterno que o Brasil ostenta.

    denise fraga

    Escreveu até dezembro de 2016

    É atriz e autora de "Travessuras de Mãe" (ed. Globo) e "Retrato Falado" (ed. Globo).

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