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    Denise Fraga

    Como nossos pais

    02/04/2013 03h30

    Comecei a cantarolar baixinho e o taxista perguntou se eu queria que ele aumentasse o volume. Tocava no rádio nada mais nada menos que "Father and Son", de Cat Stevens, hino de minha adolescência.

    Eu e minha amiga Vânia ficávamos deitadas no tapete da sala lendo a letra no encarte do LP, acompanhando Stevens com nosso sofrível inglês e total sofreguidão.

    O rapaz aumentou o volume, também adorava a música. "Mas não é ele cantando, é?" --perguntei. Meu amigo taxista não sabia dizer, talvez fosse jovem demais. Havia muito tempo que eu não ouvia a canção. Fiquei esperando a parte de meu maior prazer, quando, quase em esgares, Stevens cantava "How can I try to explain? When I do, he turns away again. And it's always been the same, same old story...". Não vinha. Não veio.

    A voz até parecia ser dele, mas quem cantava percorria tão suavemente a crise entre o pai e o filho, talvez até desse mais corpo à voz do pai, que acabei concluindo: "Não, não é ele. Ele cantava o filho que quer sair de casa quase gritando, com muito mais emoção".

    Quando a música terminou, o locutor da rádio me desmentiu. Era o próprio. O que teria acontecido? Seria uma regravação? Eu me lembrei de que Stevens tinha se convertido ao islamismo. Talvez tivesse regravado a canção de forma mais branda, coisas de religião, sei lá.

    Voltei a olhar pela janela suspeitando que a melhor explicação para a nova versão aguada de meu hino revolucionário talvez fosse só os atuais cabelos brancos do artista. À esta altura, Stevens não era mais filho, e sim pai. Talvez avô.

    Eu me entristeci um pouco por saber que a "minha" "Father and Son" havia sido substituída e fui para casa pensando nesse ciclo inevitável no qual percebemos assustados que fazemos muitas coisas como nossos pais.

    Antes de começar a escrever, fui pesquisar na internet para ouvir de novo a nova versão. Não achei nenhuma regravação de "Father and Son" pelo próprio Cat Stevens, tampouco por Yusuf Islam, seu atual nome islâmico. Tremi. Muito provavelmente, a versão ouvida no táxi era a mesma da minha adolescência.

    Será que foram meus ouvidos de mãe que se tornaram insensíveis à eloquência com que Stevens me fazia acompanhá-lo aos berros, no tapete de minha juventude? Ponho os fones de ouvido e, aos poucos, vai me voltando a emoção e a vontade de cantar junto. Mas que é verdade que hoje também me emociona a parte do pai, lá isso é. Os cabelos brancos são meus.

    denise fraga

    Escreveu até dezembro de 2016

    É atriz e autora de "Travessuras de Mãe" (ed. Globo) e "Retrato Falado" (ed. Globo).

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