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    Denise Fraga

    O milagre do saco plástico

    12/01/2014 02h30

    Lembro até de seu nome: Nadir. Foi minha professora de geografia. Já me esqueci de todas as capitais, mares e rios que ela possa ter tentado me ensinar com seu falatório cansado, mas foi apenas uma de suas aulas que fez com que ela nunca mais me saísse da cabeça.

    Entrou na sala nervosa, colocou suas coisas em cima da mesa, ameaçou começar o de sempre, mas resolveu sentar. Não sentou na cadeira da escrivaninha, hábito de muitos de meus velhos professores que, com o avançar da idade, já davam suas aulas sentados. Ao contrário, dona Nadir até rejuvenesceu, pois sentou sobre o tampo da mesa. Ficou em silêncio, encarando a turma. "Hoje a minha aula vai ser diferente." Não precisava nem dizer, já estava irreconhecível.

    A senhora gordinha e carrancuda era agora uma mulher jovem e franca, sentada de perna aberta sobre a escrivaninha. O que a transformou foi um acontecimento banal. Teve que frear bruscamente seu carro quando um saco plástico grudou no seu para-brisa. Por incrível que pareça, naquela época, jogar um saco pela janela não era algo tão absurdo e a aula inusitada não foi um sermão politicamente correto sobre o assunto.

    Ilustração Zé Vicente

    O fato é que dona Nadir tinha levado um susto e entrara em contato com o cristal, com a vida na corda bamba e o mero saco plástico ao vento fez com que ganhássemos de nossa medíocre professora de geografia uma incrível aula de filosofia. dona Nadir refletiu sobre o instante, sobre o quanto tudo pode se transformar muito rapidamente. Falou do quanto podemos promover revoluções quando agimos em horas fundamentais.

    Suas palavras evoluíam nos recrutando como poderosos agentes sobre essa matéria etérea que é a vida. Nunca mais esqueci. Na verdade, me lembro de duas de suas aulas: a do milagre do saco plástico e da sua aula seguinte, quando ela voltou ao seu estado letárgico de professora quase aposentada.

    Seus mares e rios voltaram a fluir em branco, enquanto eu esperava ansiosa por aquela outra Nadir. Aquela que, de perna aberta, sabia muito mais do que acidentes geográficos. Mas a lucidez não nos livra dos dramas.

    denise fraga

    Escreveu até dezembro de 2016

    É atriz e autora de "Travessuras de Mãe" (ed. Globo) e "Retrato Falado" (ed. Globo).

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