• Colunistas

    Saturday, 04-May-2024 15:10:18 -03
    Denise Fraga

    Calça, camisa e poesia

    20/04/2014 02h30

    Saí do cinema e vi o homem sentado no saguão. Não podia sair daquele jeito. Chorava copiosamente. Usava calça, camisa e tinha ao lado uma pasta de couro, dessas antigas. Pensei em oferecer ajuda, mas eu também ainda trazia os meus olhos vermelhos. Estávamos num cinema, um lugar pra chorar. Pus os óculos e fui embora tentando adivinhar a vida daquele homem comum que chora no cinema. Quantos de seu escritório o imaginariam naquele estado? Quantas almas inquietas se neutralizam em suas calças e camisas? Me lembrei do engenheiro. Quem já fez uma reforma em casa sabe o quanto um engenheiro ou um arquiteto pode virar quase um membro da família. Entram na vida da gente e até nos enxugam as lágrimas quando os quatro meses prometidos viram um ano. Talvez pela intimidade adquirida, quando ficou pronto o piso do banheiro, Antonio Carlos deixou escapar:

    — Ficou ótimo! Até pus aqui o jornal!

    — Que jornal?

    Me contou, tímido, que costumava enterrar em seus concretos o jornal do dia junto com alguns objetos e um bilhete.

    — Bobagem! Uma cartinha dizendo que estivemos por aqui.

    Fiquei absolutamente surpresa. Antonio Carlos tinha até nome de engenheiro, mas acabara de incrustar sua alma de artista no piso do nosso banheiro. Muitas vezes, estou por ali olhando meus pés no azulejo e penso na cápsula do tempo do engenheiro de calça e camisa. Quem parará a marreta ao se deparar com o pequeno coração de concreto em que pisamos todos os dias? As pessoas são mesmo muito surpreendentes.

    No outro dia, perguntei ao técnico que nos ajuda com os computadores de casa qual era a nossa nova senha para a internet.

    — Pra viver eu preciso de poesia.

    — Eu também! - respondi.

    — Então. Achei que era bom. É sua senha: pravivereuprecisodepoesia. Tudo junto, minúsculo.

    Fiquei boquiaberta. O rapaz formal, de calça e camisa, colocou como senha para nosso acesso ao mundo virtual uma frase que, com toda a minha alma de artista, eu jamais ousaria. É verdade, vive-se melhor com poesia. Não é mais a senha. Pode espalhar.

    Ilustração Zé Vicente

    denise fraga

    Escreveu até dezembro de 2016

    É atriz e autora de "Travessuras de Mãe" (ed. Globo) e "Retrato Falado" (ed. Globo).

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024