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    Denise Fraga

    A árvore de chupetas

    14/09/2014 02h00

    Não cumpri a lei. Sempre tive imenso prazer em olhar pela janela dos táxis que pego pela cidade, mas, nos últimos anos, meus olhos, que flanavam libertos pelas esquinas, foram sendo dia a dia capturados por meu smartphone. Decretei, então, uma lei particular proibindo o uso do aparelho nos táxis.

    Ilustração Cesar Vicente

    Finjo que estou num avião. Consegui me afastar do vício por boas semanas, mas o poder de captura da coisa é mesmo arrasador. Como num passe de mágica, ele reaparece em minhas mãos e, quando dou conta, meus dedos ávidos por aproveitar o tempo já desperdiçam novamente a cidade lá fora.

    Ontem, voltei a controlar meu superpoder de onipresença e pousei de novo em calma meus olhos pela janela. Ganhei um prêmio por isso: uma árvore de chupetas. Isso mesmo. Numa esquina que não me lembro, alguém resolveu dar à cidade uma incrível árvore de chupetas.

    Um fulano qualquer ficou ali boas horas a pendurar todas elas. Ou será que foi uma por dia? De quem eram tais chupetas? Será que esta figura especial, capaz de dar à cidade tamanha poesia, rouba chupetas de bebezinhos? Talvez não passe de uma mãe maníaca por limpeza que costuma descartar a chupeta de seu bebê cada vez que cai no chão e, culpada, simplesmente as pendura na árvore rumo à pracinha. Quem será este pedestre invisível?

    Além de toda a riqueza de cenas que transborda do caos da cidade, meu celular quieto na bolsa ainda é capaz de fazer minha mente passear pela construção destes anônimos que aliviam nossa selva de pedra com suas intervenções poéticas. Quem enfeitava as árvores da pequena praça da avenida Sumaré com laços coloridos de floricultura? Quem clama por "mais amor, por favor"? Quem será o autor do "você passa, eu acho graça, você prédio, eu acho tédio"? Quem me emocionava com o rostinho do menino grafitado no túnel da Doutor Arnaldo que, invariavelmente, velava o sono de alguém ao seu queixo?

    Tiraram ele de lá. Só ele. Seus amigos continuam por ali em sonhos sem guarda. A tinta cinza que nos privou das palavras de Gentileza também é anônima. E veloz. Melhor manter meu celular na bolsa. A poesia urbana é fugaz.

    denise fraga

    Escreveu até dezembro de 2016

    É atriz e autora de "Travessuras de Mãe" (ed. Globo) e "Retrato Falado" (ed. Globo).

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