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    Denise Fraga

    O dia do piloto

    12/04/2015 02h00

    Uma moça faz o seu check-in no aeroporto. Ela tem uma passagem-brinde que ganhou numa situação qualquer. Sentada no avião, ela recebe uma cantada do homem ao lado e, na conversa charmosa, descobre-se que ele é um crítico que praticamente acabou com a carreira de seu ex-namorado.

    Continuam a conversa, citando o nome do dito-cujo, até que uma senhora se levanta e diz também conhecer o tal fulano. É uma ex-professora que o reprovou. Mais e mais passageiros vão se agregando ao grupo dizendo ter alguma ligação de desafeto com o sujeito.

    Todos ganharam de forma gratuita as suas passagens e agora olham temerosos para a cabine de comando, suspeitando da identidade do piloto. Este é o exagerado, mas genial começo de "Relatos Selvagens", um dos melhores filmes do ano passado, que me provocou gargalhadas nervosas diante de um absurdo desfile de neuroses urbanas.

    Ilustração Zé Vicente

    Não paro de me perguntar se o copiloto do Airbus A320 da Germanwings chegou a assistir ao filme antes do dia em que teria acordado com funesto propósito de alterar a sua rota.

    Tive o privilégio de conhecer o saudoso Costinha, querido comediante de minha infância que não viajava de avião por nada deste mundo. Questionado numa conversa sobre a imaturidade do seu medo, ele falou:

    —Sei que não se morre de véspera, mas sabe lá se é o dia do piloto!

    O que Costinha queria dizer com "o dia do piloto" obviamente não era o dia de fúria que teria acometido o copiloto Andreas Lubitz, fazendo com que levasse com ele mais 150 vidas que talvez não estivessem com seus dias "agendados". O mundo está bem esquisito e nem todo o humor do mundo nos fará assimilar uma coisa dessas.

    Quando vi "Relatos Selvagens", saí do cinema com uma sensação estranha. O filme é ótimo, mas há algo de muito desconfortável em vermos tanta fúria às gargalhadas.

    Diante da queda do avião no último dia 24, de motoristas que aceleram diante de passeatas, de francoatiradores, de crianças jogadas pela janela e do crescente número de crimes produzidos pela neurose urbana, voltei à tal sensação e o filme começou a me parecer perto demais, natural demais. E sem graça nenhuma.

    denise fraga

    Escreveu até dezembro de 2016

    É atriz e autora de "Travessuras de Mãe" (ed. Globo) e "Retrato Falado" (ed. Globo).

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