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    Denise Fraga

    Insatisfação preciosa

    10/05/2015 02h00

    "Sou, sou insatisfeito. E esta seria a razão pra vocês me pagarem melhor, se tivessem juízo. Pois a minha insatisfação é comigo mesmo. Mas, em vez disso, vocês fazem de tudo pra que eu fique insatisfeito com vocês. Vocês amarram a boca do boi que está trabalhando!"

    No meu ofício, tenho a felicidade de repetir algumas noites um texto como este. Trata-se de Bertolt Brecht, com sua ironia ímpar, em seu Galileu Galilei, que estamos ensaiando. Nós, atores, costumamos esperar chegar algumas das falas que temos que dizer durante uma peça. Geralmente, passamos com prazer por todo o texto, contando nossa história para o público, mas algumas réplicas são como pedaços de chocolate que esperamos para abocanhar. Esta é uma delas.

    Galileu foi um cientista inquieto e insatisfeito, obcecado por provar suas hipóteses. Um homem revolucionário, mas que passou grande parte da sua vida dando aulas particulares para reforçar seu insuficiente salário de professor. Quanto de nossa insatisfação poderia ser nosso melhor ingrediente se fosse realmente valorizada?

    Ilustração Zé Vicente

    Muitos de nós escolhemos profissões cujas forças produtivas nascem da insatisfação. Os artistas, os cientistas, os escritores, os jornalistas, os professores, os advogados e tantos outros escolhem seus ofícios movidos por uma insatisfação vibrante, um profundo desejo de transformação das coisas, uma vontade genuína de arregaçar as mangas por um mundo melhor.

    Quantos ficam pelo caminho? Quanto do frisson de suas inquietudes produtivas acaba sendo transferido para o ódio às estruturas econômicas a que se dispõem?

    É mesmo vil o vil metal. O poder corrosivo do dinheiro sobre as melhores intenções é mesmo assustador. O talentoso é contratado e, no dia a dia do seu trabalho, quer seja pelo salário que ganha, quer seja pela dura estrutura corporativa a que serve, não consegue encaixar ali o talento que foi o motivo da sua contratação.

    Precisamos cuidar do lugar onde depositamos nossa preciosa insatisfação. Vivemos uma vida inventada em louvor ao rendimento financeiro e nos embaralhamos em estruturas que acabam por inibir o melhor de nós. Provavelmente perdemos muito com isso. Até dinheiro.

    denise fraga

    Escreveu até dezembro de 2016

    É atriz e autora de "Travessuras de Mãe" (ed. Globo) e "Retrato Falado" (ed. Globo).

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