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    Denise Fraga

    E o enclave foi entregue

    01/12/2016 12h11

    Divulgação

    A casa parecia cada dia maior. Chegou a abrigar 12 de nós e agora os três que restavam, vez ou outra, sentiam-se flutuar. Alguns cômodos passavam dias sem que se desenhasse pegadas nas camadas de pó abandonadas pela faxineira. Com o tempo, o cotidiano de meus tios e minha prima foi se concentrando em 20% dos metros quadrados, deixando o resto da casa ir sendo absorvido pela memória. Mas havia o imenso quintal a limpar todas as manhãs. Os velhos dobbermans ainda davam conta do serviço de segurança mediante a ração barata, um pouco d'água e a lavagem do quintal no dia seguinte.

    Era feriado. Meus tios estavam apreensivos. Tinham ouvido a conversa ao telefone, a combinação do comboio dos carros para a praia, mas se despediram de minha prima na calçada fingindo alegria e indiferença. Não podiam mais largar a casa sozinha, tampouco impedir que a filha se divertisse. Nestas horas, a vendinha de bebidas armada ao lado do portão até fazia-lhes gosto. Meu tio já andava em conversas mais demoradas com o tal do Xuxa, que até lhe abria o portão pro carro quando chegava. As casas sem reboco do fim da rua vieram se aproximando ano após ano, a comunidade havia crescido em torno, criando um enclave de resistência de meus velhos tios na casa da minha infância.

    O som dos tiros era fundo permanente, mas não havia balas perdidas e isso já era um grande motivo para continuarem ali. Meu tio até se divertia com um jogo macabro: conseguia dar o nome da arma ao som do estopim, sem nunca ter lidado com uma, apenas pela cultura de guerra da vizinhança. Mas não havia assaltos e, em seus quase 50 anos de bairro, nunca tinha visto um corpo estendido no chão.

    Despediram-se da filha no fim da tarde, estavam tomando a sopa vendo o jornal, quando ele bateu os olhos no quintal. Largou a colher e correu. Lá estava deitado seu velho Mengo, sem sangue, sem nada. Ele desconfiava, andava caído o cachorro. Já nem lembravam mais de quantos anos tinha.

    Ameaçou chorar, mas a angústia de achar um modo para se livrar do corpo do animal naquele fim de semana vazio acabou roubando suas lágrimas.

    Passaram o sábado sem saber o que fazer com o cachorro coberto no cimento à vigília da cadela Fla. Não ousou contar para a filha no telefone temendo estragar seu raro passeio, tampouco podia arriscar sua hérnia de disco tentando tirá-lo dali. Com o resto da família fora e não tendo a quem recorrer, decidiu apelar pro Xuxa.

    No cair da noite, sentiu um arrepio de medo enquanto ajudava o novo amigo a por no porta malas do carro o corpo do velho companheiro envolto num saco de lixo. Escondendo o desespero, experimentou a adrenalina daquele mundo durante o trajeto até o terreno mais próximo. Voltou abatido, deu uma gorjeta ao parceiro, sentou na mesa e chorou. De medo, de pena, de vergonha, de tristeza e saudade.

    Quando minha prima chegou de viagem, prolongaram o jantar arranjando a venda da casa.

    denise fraga

    Escreveu até dezembro de 2016

    É atriz e autora de "Travessuras de Mãe" (ed. Globo) e "Retrato Falado" (ed. Globo).

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