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    Diogo Bercito - Diogo Rodrigues Bercito

    O dia depois de Aleppo

    28/12/2016 02h00

    In this Wednesday, Sept. 21, 2016 photo released by the Syrian Presidency, Syrian President Bashar Assad speaks to The Associated Press at the presidential palace in Damascus, Syria. The House on Nov. 15, overwhelmingly approved bipartisan bills to crack down on supporters of Syrian President Bashar Assad's government and renew a decades-old Iran sanctions law. Swift passage underscored broad support on Capitol Hill for punishing financial backers of the Syrian government and maintaining economic pressure on Tehran.(Syrian Presidency via AP) ORG XMIT: WX108
    O ditador Bashar al-Assad, durante entrevista no palácio presidencial de Damasco, na Síria

    Bashar al-Assad, ditador da Síria, celebra nestes dias sua vitória em Aleppo. Ele colocará nesta cidade as bandeiras do regime e seus próprios retratos, como os tantos outros que enfeitam o restante do território que controla.

    É um importante avanço estratégico. Aleppo era a maior cidade da Síria quando a guerra começou, em 2011, e tornou-se um emblema do conflito. Mas é difícil imaginar que Assad celebre hoje em Damasco. Ele deve se lembrar de que os embates civis tão cruentos têm violentas consequências.

    Seu pai, Hafez al-Assad, enfrentou também a seu tempo revoltas no país. Ele reprimiu a dissidência em Hama, em 1982, com a mesma estratégia: um cerco. As mortes, estimadas pelo jornalista britânico Robert Fisk em 20 mil, deixaram uma fratura social – reaberta nos últimos anos.

    Assad lida, ademais, com uma população que compartilha, entre seus mitos fundadores, a história de Karbala. Ele sabe que uma guerra civil pode marcar uma comunidade não apenas por décadas, mas também por séculos.

    A Batalha de Karbala, travada em 680 no que é hoje o Iraque, foi um dos episódios fundamentais da história do Oriente Médio. Uma "fitna", como é dito em árabe, uma "divisão". Em resumo: disputavam àquela época os partidários de um califado por eleição, que são conhecidos hoje como "sunitas", e os defensores de que o governo fosse hereditário, os "xiitas". Essa história está detalhada no livro "After the Prophet", de Lesley Hazleton.

    Hussein, neto do profeta Maomé, se recusava a seguir o califa Yazid. Ele foi cercado por um exército em Karbala, ao lado de seus seguidores. Havia mulheres e crianças entre eles. Os soldados lhes impediram a fuga, lhes negaram água. Um a um, eles morreram ali. Hussein foi decapitado.

    A morte da comitiva de Hussein, estimada em pouco mais de cem pessoas, não resolveu a crise política. Pelo contrário. O episódio tornou-se símbolo da opressão e agravou as rachaduras na comunidade muçulmana. O martírio de Hussein é até hoje celebrado todos anos pela população xiita.

    É uma história que ainda habita as superfícies na região. Subhi al-Tufayli, que foi secretário-geral da milícia libanesa xiita Hizbullah entre 1989 e 1991, recentemente comparou Aleppo e Karbala em um inflamado discurso. O cerco atual é, disse, tão catastrófico quanto o medieval.

    As comparações são limitadas e não dão conta, por exemplo, da barbárie também cometida pelos rebeldes armados em Aleppo. Mas a memória tem função exemplar: recorda as partes envolvidas no conflito de que as 100 mil pessoas mantidas sob cerco, entre a fome e a chuvarada de bombas, vão cobrar o seu preço. Ainda que seja só nas páginas da história.

    Diogo Bercito

    É mestre em estudos árabes e correspondente da Folha em Madri.

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