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    Drauzio Varella

    Campos de extermínio

    16/05/2015 02h00

    Horror é palavra inexpressiva para caracterizar o que senti nesta manhã. Cresci ouvindo histórias das atrocidades nazistas na Segunda Guerra Mundial. Mais tarde, vi fotografias e assisti a documentários que exibiam as imagens da tragédia humana causada por eles.

    Escrevo a coluna de hoje sob o impacto da visita que acabo de fazer aos campos de extermínio de Auschwitz e Birkenau, eufemisticamente denominados campos de concentração pela propaganda do Terceiro Reich.

    Ver imagens e ouvir falar, no entanto, é vivência pálida comparada à da presença física nas instalações em que os crimes ocorreram. O impacto da fotografia de uma câmara de gás projetada para assassinar mais de mil pessoas ao mesmo tempo é quase insignificante perto da experiência sensorial de estar em seu interior.

    Os pavilhões dos prisioneiros de Auschwitz formam um conjunto arquitetônico harmonioso. São prédios de tijolinhos aparentes, linhas retas, janelas simétricas, enfileiradas, e uma porta de madeira na entrada, acessível por um lance de quatro ou cinco degraus de concreto, no centro geométrico da fachada. No ângulo superior esquerdo da soleira, uma pequena placa quadrada com o número do pavilhão, único detalhe acrescentado ao minimalismo da parte externa. No alto do telhado, uma chaminé retangular.

    Visto de fora, poderia ser um colégio ou centro cultural, não fossem as cercas de arame farpado, as torres de vigia, a forca junto à entrada, o paredão de fuzilamento num dos pátios internos, as câmaras de gás e os fornos crematórios.

    O interior dos pavilhões foram organizados para cumprir a função primordial do campo: aprisionar o maior número de pessoas selecionadas para o trabalho escravo, nas piores condições imagináveis. Os demais eram exterminados ao desembarcar dos trens. Num ambiente de penúria alimentar, sem roupas de inverno para enfrentar temperaturas que chegam a 20 graus negativos, talvez a morte imediata não fosse o destino mais desumano.

    Algumas celas nada ficavam a dever às mais apinhadas do antigo Carandiru. No subterrâneo de um dos pavilhões, vi um grupo delas com 90 x 90 cm, nas quais encerravam no escuro quatro homens em pé. A única fonte de oxigênio vinha de um buraco no alto, pouco maior do que um maço de cigarro.

    Talvez não devesse me chocar com tais requintes de perversidade. Na Casa de Detenção conheci presos mais velhos que contavam histórias de celas de castigo com 20 homens obrigados a dormir em rodízios de oito horas, enquanto os companheiros permaneciam 16 horas em pé, por falta de espaço para sentar. Cumpriam até 90 dias nessas condições. Nas trocas de turno podiam urinar e puxar a descarga do vaso sanitário do xadrez. Esvaziar os intestinos, apenas às quartas e aos sábados por ocasião do banho no chuveiro coletivo.

    Papel especial desempenhavam os "médicos" dos campos de extermínio. Cabia a eles recepcionar os recém-chegados, vistoriá-los sumariamente e separar os que julgavam aptos daqueles encaminhados diretamente às câmaras de gás, tratar os doentes que poderiam voltar ao trabalho, condenar à morte os demais, dar assistência técnica às sessões de tortura, supervisionar a abertura das câmaras para atestar que todos estavam mortos e conduzir "experimentos".

    A Alemanha tinha a medicina mais avançada do século 20 até os nazistas substituírem todos os professores universitários e chefias dos centros de pesquisa e de atendimento por membros do partido.

    Em Auschwitz, o psicopata Mengele chefiou um grupo de energúmenos diplomados, convencidos de que pertenciam a uma raça superior, portanto com o direito e a oportunidade para conduzir experiências em cobaias humanas.

    Pouparei você, leitor, da descrição das crueldades perpetradas por esses facínoras. Limito-me a dizer que além de sádicos da pior espécie, eles eram absolutamente ignorantes. Nada, absolutamente nada, acrescentaram ao conhecimento médico; não deixaram uma linha sequer de interesse científico.

    Em Auschwitz, entre 1940 e 1945, foram assassinadas um milhão e cem mil pessoas. Foi o maior campo de extermínio da história da humanidade.

    drauzio varella

    Médico cancerologista, dirigiu o serviço de Imunologia do Hospital do Câncer. Um dos pioneiros no tratamento da Aids no Brasil e do trabalho em prisões. Escreve aos sábados, a cada duas semanas.

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