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    Edgard Alves

    Memória viva

    10/11/2015 02h49

    Toda Olimpíada é uma fonte inesgotável de fatos históricos, resgates e coincidências, umas hilariantes –alegres, tristes, engraçadas ou mesmo incompreensíveis. No Rio de Janeiro não vai ser diferente.

    É intrigante a cada Olimpíada mostrar a cara de um novo mundo, desprovido de preconceitos de qualquer natureza, embora siga incessante a luta para extirpar focos de resistência cada vez mais irrelevantes, inacreditáveis, mas ainda vivos na atualidade.

    Um caso ao menos curioso atiça a mente desde já nos Jogos do Rio, a torcida para que a provável instalação da Casa da África ocorra na zona portuária da cidade, costurando um fato histórico.

    A construção deve funcionar como uma espécie de embaixada para recepção, mostras, músicas, cultura e demais cerimônias envolvendo os países dos Comitês Olímpicos Nacionais da África. Montar casas desse tipo na cidade sede é uma estratégia costumeira, utilizada por boa parte dos países participantes da Olimpíada.

    Por que então chama a atenção a iniciativa da casa dos países africanos, mesmo não se sabendo ainda como será? É que na região portuária do Rio ficava o Cais do Valongo, construído em 1811, que, na época do Brasil Império, foi local de desembarque e comércio de escravos africanos.

    O repugnante, perverso e criminoso negócio funcionou até 1831, quando foi proibido o tráfico negreiro no país. Calcula-se que ali foram desembarcados entre 500 mil e um milhão de escravos.

    Posteriormente, o local acabou aterrado e, só em 2011, foi redescoberto durante escavações para as obras de revitalização da zona portuária, um dos pontos de atração da Olimpíada do Rio.

    Historiadores consideram o lugar o único ponto de chegada de africanos que se preservou nas Américas. O Valongo representa a tragédia da diáspora africana. O Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e a prefeitura da cidade até elaboraram um dossiê para que a Unesco conceda ao local o título de Patrimônio da Humanidade.

    Portanto, aí está uma questão emblemática. Uma região da cidade, onde aportavam navios negreiros, pode vir a se converter no grande espaço de recepção dos países africanos.

    É para ver a África agora e o que o continente pretende ser no futuro, alertou ao jornalista Igor Siqueira, do Lance!, o general Lassana Palenfo, presidente da Associação dos Comitês Olímpicos Nacionais da África.

    O projeto visa promover a cultura, o esporte, o turismo e tudo sobre a África durante os Jogos, sem qualquer referência à escravidão. Façanha quase impossível, uma vez que as heroicas lutas dos negros africanos, dentro e fora da África, contra a escravidão, a pobreza e a opressão sempre foram retumbantes. Nunca cairão no esquecimento.

    Pode alguém negligenciar epopeias como as contra a escravatura nas Américas, do sul ao norte? Ou a resistência do carismático líder Nelson Mandela no combate contra o apartheid –regime segregacionista, hoje abolido– na África do Sul? Mandela partiu, mas a história continua viva. E as lutas nos demais países africanos?

    Até momentos olímpicos precisam ser rememorados para não caírem no esquecimento. O episódio do primeiro boicote de porte a uma Olimpíada é um deles.

    Em Montreal-76, lideradas pelo Congo, 26 nações africanas, mais Iraque e Guiana, se recusaram a competir ao lado da África do Sul. Resultado de um protesto pelo COI não ter suspendido a Nova Zelândia, cuja seleção de rúgbi havia excursionado pela África do Sul, país que estava suspenso do movimento olímpico internacional por causa da sua política de apartheid.

    O continente africano tem muito para contar e exibir. A Olimpíada pode contribuir para isso. É o grande teatro para mostrar a África e seus contrastes, coisas que muita gente precisa conhecer. Como a história do Rio olímpico, o Cais do Valongo e o próprio Brasil.

    edgard alves

    Jornalista esportivo desde 1971, escreve sobre temas olímpicos. Participou da cobertura de seis Olimpíadas e quatro Pan-Americanos. Escreve às terças.

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